João Neto Felix
A loucura que mora na esquina
À memória de Regina Cambão e todos os loucos santanenses.
Dizem que todo lugar tem seus loucos. Mas em Santana do Ipanema, a loucura nunca foi apenas um detalhe da paisagem; foi personagem, memória e literatura. Enquanto outras cidades escondiam seus desajustados atrás de muros altos ou cochichos curtos, Santana, a terra espinhosa - dita por Graciliano Ramos -, vaidosa como quem sabe que tem ouro nas mãos, decidiu transformá-los em matéria-prima de histórias.
Talvez a culpa — ou o mérito — tenha sido de Breno Accioly(1921-1966), o contista da loucura. Foi ele quem primeiro percebeu que, no calor do sertão, a fronteira entre o real e o fantástico era tão fina quanto o pó vermelho que o vento levantava na Rua Coronel Lucena. Breno olhou para os loucos da cidade e viu mais que excentricidade: viu poesia, viu humanidade, viu Brasil. E assim, de repente, a cidade ganhou um espelho literário onde seus personagens mais improváveis se tornaram eternos.
Depois veio Oscar Silva(1915-1991), que não deixou a chama apagar. Pelo contrário: soprou, atiçou, espalhou. Oscar tinha o dom de recolher histórias como quem catava seixos brilhantes no leito seco do riacho Camoxinga. Cada figura que vagava pelas ruas falando sozinha, brigando com o vento, pregando sermões para as galinhas, virava protagonista de um caso tão absurdo quanto verdadeiro. Santana, cúmplice, ria, acolhia e comentava.
A loucura sertaneja nunca foi tratada como doença. Era quase um patrimônio afetivo. Tinha o Louro que discutia política com as sombras, a Maria doida que benzia até poste, o Zé de Gato que jurava ter conversado com Lampião num sonho de três dias. Gente que, em outro lugar, seria apenas ruído. Aqui, virava um capítulo.
E o mais curioso é que, no fundo, ninguém ali se achava completamente são. Talvez por isso a cidade tivesse tanta facilidade em abraçar seus excêntricos. O sertão, afinal, sempre exigiu um pouco de loucura para sobreviver: quem mais insistiria em plantar esperança num chão tão teimoso?
Hoje, quando alguém pergunta por que Santana do Ipanema tem tantos loucos, eu sorrio. Não é que tenha mais. É que aqui ninguém desperdiça uma boa história. E, no fim das contas, talvez a verdadeira loucura seja viver num lugar onde ninguém presta atenção nos seus próprios personagens. Aqui, até a loucura tem sobrenome, memória e plateia.
E o curioso é que, em Santana, ninguém se espantava com a convivência entre o absurdo e o cotidiano. Era natural que, no meio da feira, entre um quilo de feijão e um maço de coentro, surgisse um profeta improvisado anunciando o fim do mundo para a próxima terça-feira. O povo nem se abalava: - Deixa ele, é doido manso! E seguia comprando porque o fim do mundo que sempre teve hora marcada, passou despercebido.
Os meninos cresciam aprendendo a distinguir os doidos como quem aprende a identificar pássaros. “Aquele ali é o que conversa com o rádio desligado.” “Aquela é a que sabe o nome de todo mundo, mas ninguém sabe o dela.” Era quase uma ciência, uma zoologia afetiva. E, no fundo, cada criança nutria uma pontinha de orgulho quando virava personagem de alguma história contada por um desses andarilhos da imaginação. Era como receber um diploma de pertencimento.
Havia também os loucos que filosofavam. Santana sempre teve seus pensadores de calçada, homens que, sem nunca terem lido Platão, discutiam com a mesma seriedade o destino da humanidade e o preço da rapadura. E o mais impressionante é que, muitas vezes, faziam mais sentido que os doutores. Talvez porque a loucura, ali, fosse menos um desvio e mais uma forma de enxergar o mundo sem as amarras da lógica comum.
E como esquecer os que tinham mania de grandeza? O sujeito que se dizia dono de metade do sertão, o outro que jurava ser conselheiro de governadores, a mulher que afirmava ter inventado a chuva. Em qualquer outro lugar, seriam motivo de pena. Em Santana, eram tratados com a mesma solenidade que se dá a um coronel antigo. Afinal, quem era o povo para desmentir alguém tão convicto?
O mais bonito, porém, era a maneira como a cidade inteira participava dessa construção coletiva. Cada morador acrescentava um detalhe, uma frase, um gesto, e assim os loucos iam ganhando camadas, profundidade, quase como personagens de romance. E talvez fosse isso mesmo: Santana, sem perceber, escrevia literatura viva todos os dias, nas esquinas, nas praças e nos bancos da igreja.
E quando a noite caía, com aquele vento morno que só o sertão conhece, os loucos se recolhiam; uns para suas casas, outros para seus mundos. E a cidade, silenciosa, parecia guardar cada história como quem guarda um tesouro. Porque, no fundo, a cidade sabia que sua identidade não estava apenas nos vaqueiros, nas serras ou no rio. Estava também nesses seres que caminhavam entre o real e o imaginário, lembrando a todos que a vida, para ser suportável, precisa de um pouco de desatino.
E assim, geração após geração, a loucura santanense foi se tornando menos um estigma e mais um traço cultural. Uma marca registrada. Uma espécie de poesia ambulante. E talvez seja por isso que, quando alguém pergunta o que faz Santana do Ipanema ser tão especial, eu respondo sem hesitar: é que aqui, meu amigo, até a loucura tem história, tem plateia e tem quem a escreva. Porventura seja também um alucinado!!



COMENTÁRIOS