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  • Santana do Ipanema, 12/10/2025
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João Neto Felix

Luz que se apaga

Foto: Assad Ali / Pixabay
Luz que se apaga

Foi com um aperto no peito que recebi a notícia: os vaga-lumes estão desaparecendo. Estudos recentes apontam que várias espécies desses pequenos besouros correm sério risco de extinção. Fiquei em choque. Não apenas pela gravidade ambiental, mas pela dimensão simbólica que esses insetos sempre tiveram para mim. A matéria assegura que a queda populacional é significativa, inclusive no Brasil. E eu pensei: como pode o mundo perder algo tão mágico sem fazer alarde? Ademais, suas larvas são predadoras carnívoras que se alimentam de caracóis, lesmas e vermes. Eles são considerados insetos benéficos devido à sua dieta, que inclui lesmas transmissoras de doenças.

O principal culpado, dizem os especialistas, é o progresso. A luz artificial das cidades, a poluição das águas, a destruição dos habitats naturais e o uso indiscriminado de pesticidas. Os dois últimos, os mais cruéis. O avanço humano, que deveria significar evolução, parece cada vez mais sinônimo de apagamento literal e metafórico.

Os vaga-lumes são criaturas discretas, mas extraordinárias. Passam por uma metamorfose completa: ovo, larva, pupa, adulto. E em duas dessas fases — larva e adulto — brilham. Bioluminescência, dizem os cientistas. Encantamento e esplendor, digo eu. As larvas vivem em lugares úmidos, escondidas entre folhas e lama. Os adultos, alados, bailam no ar como estrelas errantes. Sempre próximos da água, sempre próximos da poesia.

Lembro-me, na infância, que os vaga-lumes faziam parte do meu cenário interiorano. Sua sobrevivência depende da vegetação ciliar dos barreiros, açudes e rios intermitentes, como o rio Ipanema, que corta a minha terra. À noite, quando o céu se enchia de silêncio e o chão de mistério, eles surgiam. Pequenos pontos de luz cintilantes entre os arbustos, como se a natureza tivesse decidido acender lâmpadas para guiar os sonhos dos meninos e clarear o discernimento dos adultos.

Eu os via como seres iluminados — literalmente e espiritualmente. Sua presença era sinal de bênção, de que a noite não era apenas escuridão, mas também palco para milagres discretos. Talvez por isso, hoje, ao saber que estão sumindo, sinto como se uma parte de mim estivesse sendo apagada também.

Ainda há tempo de clamar às crianças de hoje: deixem, por um instante, as telas brilhantes dos smartphones. Permitam-se à beleza de encontrar os luminosos pirilampos. Nós iremos passar, mas não podemos esquecer  de que há outros que vêm — simples, inocentes, iluminados. As crianças, herdeiras do chão, hão de nos julgar perdidos.

Na vida adulta, apenas uma vez tive o privilégio de reviver instantes mágicos há mais de 20 anos. Foi na cidade de Quebrangulo, município margeado pelo rio Paraíba do Meio, no período em que trabalhava na acolhedora cidade, terra natal do grande mestre Graciliano Ramos. O quintal da casa onde eu me hospedava era o próprio rio Paraíba. Eis que, numa noite comum como tantas outras, enquanto eu contemplava a paisagem bucólica noturna, percebi que pequenos pontos luminosos piscantes se levantavam e se aglomeravam. Em instantes, uma revoada de vaga-lumes se formou no espelho d’água que refletia as luzes da cidade adormecida. Embalados pelo cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos e rãs, os pirilampos evoluíram numa coreografia encantada da conquista reprodutiva sob a sobrenatural escuridão da lua nova. Eu era um dos poucos espectadores privilegiados. Fiquei parado, estupefato, como quem teme espantar o milagre da perpetuação.

Um deles, erradio, pousou faiscando na minha mão. O facho de luz piscante se agigantou e me iluminou ora de verde, ora de amarelo, nem sei direito. Não importa! Fiquei imóvel para não assustá-lo. A sensação foi indescritível. Inquieto, o lumeeiro andou de um lado ao outro da minha mão e, recomposto, alçou voo e se associou aos seus até eu perdê-lo de vista. Nem sabia quem era quem. Vivi o êxtase de viver uma vida inteira em alguns segundos com um ser candente. Catarse é o que de melhor posso traduzir aquele momento.

Foi um momento raro, quase sagrado. E me pergunto: quantas crianças hoje terão a chance de viver uma experiência dessa? Quantas noites ainda serão iluminadas por esses pequenos faróis da natureza?

A extinção dos vaga-lumes não é apenas uma perda biológica. É uma desgraça que se disfarça na banalidade omissa dos homens de bem. É o mundo ficando mais escuro, menos poético. E, talvez, seja também um chamado para que sejamos nós a luz na escuridão. Como eles foram. Como ainda podem ser.

Sou das entranhas das águas, das lagoas e das Alagoas, onde ainda busco, nas noites silenciosas, o luziluzir raro dos lumeeiros. Vamos salvar o rio Ipanema e tantos outros rios que agonizam engasgados com lixo e esgoto. Vamos salvar o riacho do Bode do abandono. É peremptório: os seres de luz esperam isso de nós. Ainda há tempo. Quiçá eles voltem!

*Crônica originalmente publicada no blog Apenso com Grifo, que pode ser acessada, CLICANDO AQUI.



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