TRAPIÁ

7 Maio 2013


Saudações Caetés

Colegas de todas as gulas

Zé AgraEis que no feriado da Páscoa, mais exatamente no dia de sábado, este simples caeté estava no alpendre da Fazenda Coqueiros, lá pras bandas da Ribeira do Panema, tendo como cenário a Reserva Tocaias, a primeira RPPN de caatinga do estado de Alagoas, legado de Tio Alberto Agra para as gerações futuras. Naquele dia ocorria pelo segundo ano o encontro anual das famílias Agra, Marques e Nepomuceno, um projeto ousado do meu primo João Tertuliano. Eu estava acompanhado de meu pai, minha mãe, minha esposa e lá nos encontramos com uma gama de tias e primos alguns dos quais só me encontro nessas boas ocasiões. A “parentada” foi chegando, se apresentando e se espalhando no alpendre, que é como o sertanejo chama a varanda, formando-se assim várias rodas de conversa. Lá num canto, sentou-se numa mesa Papai, Tio Alberto e Antônio Agra, um primo que eu não conhecia. A mesa ocupada pelos três era um verdadeiro arquivo vivo, pois se fôssemos somar as suas idades dava mais de 240 anos e a conversa, como não poderia deixar de ser, tratava sobre as recordações do passado e as notícias dos primos que há muito não se viam.

A família de meu pai fixou-se na região que fica compreendida entre as cidades de Carneiros e Olho d’Água das Flores, passando pelo Sítio Caboré. Naquela época essas cidades, hoje devidamente emancipadas, eram apenas uns povoados do grande município de Santana do Ipanema. Com o crescimento da família e a fragmentação das propriedades rurais pela divisão por herança, meu avô Pedro resolveu se mudar para a sede do município tornando-se um pequeno comerciante. O pai de Antônio Agra, Tio Joaquim, era irmão de Vovô e permaneceu em Carneiros, continuando a atividade agrícola. Com o falecimento de minha avó Jovita, papai foi entregue aos cuidados dos tios Virgílio e Chiquinha que o criaram com muito carinho. Papai viveu no Caboré os primeiros dez anos da sua vida e assim pode usufruir, dentre outras coisas, de uma infância com o convívio com muitos primos e tios.

Tio Joaquim teve onze filhos de três casamentos sendo que Antônio, presente ao encontro, era filho do segundo matrimônio. Papai perguntou pelos primos e Antônio foi fazendo um resumo do histórico familiar, mas um deles, José Agra, despertou outras lembranças. Papai conta que Zé tinha um problema na garganta, de modo que quando ele ficava nervoso a voz ficava rouca e por isso dizia-se que ele era “roncoio”. Outra característica sua é que ele era um tanto quanto estabanado. Se os meninos iam subir numa árvore ele fazia questão de subir mais alto que todos, se iam apartar o gado ele procurava tomar conta de tudo e se iam comer algo ele procurava comer mais que todo mundo. O primo, me parece, era de fato muito competitivo, o problema é que essa disposição de ser maior e melhor que os outros algumas vezes o colocavam em uma boa enrascada.

Os meninos daquele tempo tiveram a melhor infância do mundo. Como não havia televisão nem videogame e as crianças só iam para a escola a partir dos dez anos de idade, a infância era uma verdadeira colônia de férias onde as principais atrações era comer frutas no pé, correr, brincar de carreiro e tomar banho nos açudes, exercendo uma liberdade que hoje não existe mais. Papai contou que, certa vez, foi com os primos tomar banho num açude que existia bem pertinho da casa de Vovô Virgílio e todo mundo pelado saltou dentro d’água. A meninada mergulhava, inventava brincadeiras de pegar dentro do açude e a felicidade era geral até que, em determinado momento, alguém lançou uma ideia aceita por todos, foram comer trapiá.

Vocês sabem o que é trapiá? Eu acredito que a grande maioria nunca viu, nem comeu e sequer ouviu falar. Eu conheço e já vi muitas vezes, mas nunca consegui comer um só, porque seu cheiro me causa repugnância. O trapiá, Crateva tapia, é uma árvore nativa da caatinga, mas também é encontrada na mata atlântica, da região nordeste. O trapiazeiro tem uma folhagem muito densa e consegue manter-se verde mesmo em condições críticas de falta d’água. O seu fruto tem a forma esférica, mais ou menos do tamanho de um limão e tem dentro uma polpa branca que encobre suas sementes. Não vou entrar aqui na discussão sobre o sabor do fruto, mas o certo é que os seus apreciadores precisam degusta-lo com moderação, porque suas sementes podem provocar um sério entupimento intestinal. E foi exatamente pela falta de moderação que Zé Agra foi protagonista de uma história que poderia ser trágica, se não fosse cômica.

Enquanto os meninos comiam um ou dois trapiás Zé comia logo uns dez e foi comendo até saciar. Todo mundo voltou para casa feliz até que, com o passar das horas Zé começou a sentir um negócio estranho na barriga e aquilo foi causando um mal estar, o tempo passando, aquele trapiá todo seguindo seu caminho pelas tripas até que finalmente chegou o momento da dejeção e foi aí que a coisa entalou. O bolo formado pelas sementes de trapiá era maior que a bitola da via de escape e como não havia como fazer o caminho de volta o trânsito engarrafou. Zé bem que botava força, mas o troço não saia. A barriga foi inchando, o coitado ficava vermelho, se aperreava, dava um tempinho, tentava de novo e o trapiá firme, não ia, nem vinha. A coisa apertou tanto que Zé Agra, sem aguentar mais, resolveu procurar sua mãe, sua madrasta na verdade, e contou o que havia comido. É bom lembrar que isso aconteceu no início da década de 40 num povoado do sertão alagoano e naquele tempo não havia os remédios, não havia médicos, nem as técnicas que existem hoje. O certo é que o cabra tava entupido e a mãe teve que dar um jeito e o jeito foi o Zé ficar fazendo força pela frente, enquanto ela ficava cutucando o trapiá por trás com a ajuda de uma colher. Não sei se era uma colher-de-sopa ou uma colher-de-chá, ele teve foi a sorte dela não usar um garfo. Conjecturas à parte, o que de fato aconteceu é que o serviço foi feito com a mais perfeita sincronia, Zé botava força e o trapiá botava o olho pra fora, aí a colher entrava em ação desalojando umas poucas sementes. A operação foi se repetindo, se repetindo até que finalmente… PUM, o cabra desentupiu de vez. O alívio até que foi imediato, mas o coitado do Zé Agra passou um bom tempo sofrendo gozação dos irmãos e dos primos que só para chatear, ficavam de longe, fazendo uns gestos que incluíam unir o polegar com o indicador de uma mão enquanto que o indicador da outra, apontando para os dois primeiros, fazia um contínuo movimento circular, para contemplar a meninada gritava:

– Ôôôô Zéééé.

Não sei quanto tempo o assunto ficou em pauta, mas o certo é que Zé gastou muita energia correndo atrás da molecada.

Os anos se passaram e alguns dos filhos de Tio Joaquim emigraram para o Paraná, naquele tempo era lá a fronteira agrícola do país. Zé Agra embarcou nessa empreitada e lá no sul fez sua vida. Lá desenvolveu diversas atividades, montou uma pequena fábrica de doces, depois trabalhou um tempo com seu irmão Vicente que tinha um posto de gasolina e depois voltou para o ramo dos doces. Anos depois Zé mudou-se para a cidade de Americana – SP, onde mais uma vez aventurou-se nos negócios dos alimentos, montando uma pequena fábrica desta vez de canudinhos. Em 1995 fez uma visita à sua terra natal, veio comemorar o centenário do seu pai. Voltou para Americana onde residiu até o ano de 2003, quando então partiu para a eternidade, deixando boas lembranças de um tempo que não volta mais.

Queridos amigos, diante das demandas do mundo moderno, desejo a todos os dons da prudência e persistência para o alcance dos objetivos de cada um e se eu puder ajudá-los, será um prazer, desde que ninguém venha me pedir uma “colher-de-chá”.

Saúde, sabedoria e paz.

Virgílio Agra

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