SOL E LUA DE BETÂNIA

21 abril 2015


Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Lá estava o aglomerado de casas, quase rústicas. Vistas de longe assim, falava duma nesga de cores pálidas. Os tons de branco destacavam-se formidavelmente. Nas fachadas de tijolos rebocados e caiados. Donde alguns quantos se destacavam. A torre da igrejinha. O balaústre do mirante do açude. O muro do cemitério. Ecomo querendo também compor excepcional quadrante, flutuantes nuvens destacavam-se lá no céu azul de anil de Betânia.

O tudo que se via, o olho do condor era que via. E os que lá embaixoviviam,ainda estes, e àqueles pormenores não viam. Talvez soubessem, ou tivessem ideia ao menos,que existiam. Duas mil e poucas almas habitavam corpos, que habitavam casas, que compunham paisagens. Sem se darem conta que o eram mesmo sendo. Obcecados na tarefa de gastarem vidas viviam. Laboriosos na mais relevante das ocupações, a de viver viviam. O carreiro carreava o carro. O menino brincava de ser ele mesmo. O mercador mercantilizando palavras. O cachorro deu com o rabo no ar, vã tentativa de espantar o tédio, de ser cachorro. Todos protagonistas de si mesmos. Mas se encenavam suas próprias histórias, aquele eratempo de viver outra encenação. A da Paixão. Teve início num pedregulho que tinha ao lado do campo de futebol. Abandonado naquele momento porque era sábado de aleluia. E como era semana santa ninguém queria jogar bola pra não ser taxado de Judas. O lajedo excelente lugar para a cena do sermão da montanha. O que recebeu o nome de Jesus seguiu andando, acompanhado dos doze. Na casa de Seu Zacarias o burrico atado, que foi requisitado por dois discípulos para que se cumprisse a palavra. “Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte Jerusalém! Eis que o rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta. Zacarias -9.”

Uma pequena multidão seguia. O público quis também participava de cada cena. Na hora de acenar com os ramos de palmeira acenaram. Acompanhavam e gritavam junto com os atores: “-Salve o filho de Davi! Hosana! Hosana!” A Betânia verdadeira ficava a milhares de quilômetros dali, do outro lado do Atlântico. Tão distante do sertão e da caatinga. Betânia ficava só a três quilômetros da cidade velha de Jerusalém e do Monte das Oliveiras. Bethania em grego, Bét-nyyah em hebraico, “casa de Ananias”, “casa dos figos verdes”. A cena da última ceia do Senhor ocorreu no patamar defronte a igreja. O Jesus adolescente de barba rala, cabelos revoltos, e pele morenada pelo sol do sertão, partiu o pão e distribuiu entre os doze. Elevou o cálice a cima da cabeça e compartilhou. Seu Luizão sapateiro quis fazer o papel de Judas. Uma cena das mais difíceis, o pobre discípulo condenado a ser o traidor, em desespero perfeito na arte do fingimento. Com força atirou contra os paralelepípedos,o saquinho com as moedas que barganhou com Caifás pela traição do mestre. Quem terá sido os que pegaram as moedas? Haveria quem dissesse que cada um dos que pegou sofreu um mau presságio. As moedas que custou o sangue precioso de Cristo encerrariam maus desígnios para quem delas se apossaram. Um pastor de ovelhas depois de se apossar de uma daquelas moedas de ouro, numa tempestade repentina teria perdido parte das ovelhas do seu rebanho. Um agricultor, dizem que porque pegou uma daquelas moedas, amargou a ruina de ver sua lavoura toda perdidacom uma enchente que destruiu tudo.

“Mazurca velha mazurca/Dança grossa do meu sertão/ Quando toca uma mazurca véio macho cai no salão/ Dança duro batendo o pé balança a casa, balança o chão.” Assim dizia no rádio a canção de Luiz Gonzaga. Na vilaCandunda havia a tradição de se dançar mazurca. Por ocasião dos festejos juninos se dançava mazurca na praça. Desde a quaresma começavam os ensaios. Um grupo de meninos e meninas, outro de jovens: moças e rapazes. E outro de adultos e idosos. Todos participavam do folguedo. Trajados em vestes de poloneses os homens, de polacas as mulheres. Representavam agricultores da região de Cracóvia. A tradição chegou a vila trazida por um padre polonês. O padre chegou a vila no tempo da segunda Guerra Mundial, quando Hitler quis dizimar da face da terra, o povo Judeu.A igreja do povoado desenhada pelo padre tinha os traços arquitetônicos do Santuário da Divina Misericórdia, da capital polonesa, conhecido devido às aparições e revelações de Jesus, reconhecidas pela Igreja Católica, a Santa Faustina Kowalska. Os homens com seus chapéus verdes com uma faixa branca e preta ornada com uma pena vermelha. As mulheres tinham aventais com franjas e lenços coloridos na cabeça, toda vestimenta predominava as cores vermelho e branco da bandeira da Polônia. Era engraçado,pra quem jamais vira, os passos da dança. Uma fila de homens, outra de mulheres, realizava bela coreografia. Inicialmente soltos, cujos passos, cujo ponto forteera o bater dos pés, como um sapateado. Depois as duas filas se aproximavam e dançavam aos pares. A um toque diferenciado dos músicos e todos largavam seus pares e trocavam de parceiros. O fole, e a zabumba eram os instrumentos predominantes, o triangulo, o pandeiro e o pífano eram alternativos.

Betânia não vingou no sertão. O nome sugerido pelo padre polonês, foi aceito e bem acolhido somente pelos habitantes mais jovens. Entre os antigos moradores porém, Betânia jamais deixaria de ser Candunda. Os mais antigos, jamais se acostumaram com o novo nome sugerido pelo pároco. Canduda era espécie de peixe de pequenas dimensões, alimentavam-se basicamente de microrganismo disperso na água, que filtram à medida que sugam a água pelas minúsculas guelras, com a ajuda de branquispinhas, que são excrescências ósseas dos arcos branquiais (a estrutura que segura às brânquias ou guelras).O peixe candunda não vive em cardume e se reproduzem pouco com alternância da fase da lua entre a minguante e crescente. Faz do fundo dos açudes seu nicho, tem preferência pela profundidade onde possam estar livre dos predadores, os peixes maiores as tarrafas e as puçás dos pescadores. Ao atingirem a idade adulta não passam de 3 a 6 centímetros de envergadura. Na quaresma devido a época favorável a pesca, tornava-se presa do homem.Candunda dava uma prato típico do povoado a fritada.

Existia uma lenda sobre a chegada do peixecandunda na região. Dizia que os colonizadores desbravando os sertões chegaram à região montado em mulas e jumentos. Cansados de tanto andar debaixo do sol quente, a caravana resolveu descansar. Ao se aproximarem dum pé de uma clareira perceberam um grupo de mulheres morenas lavando roupa as margens dum lago no sopé duma montanha. Aproximaram e perguntaram se podiam pegar um pouco de água, as mulheres permitiram, desde que algo lhes fosse dado em troca. Com uma exigência especial: tinha que ser algo vivo que nunca tivessem visto. Não aceitavam as mulas pois já conheciam, nem carneiro pelo mesmo motivo. Entre os colonizadores havia um negro escravo com uma moringa de couro de carneiro, na qual disse que trazia uns peixinhos que pegara no rio Jordão. Pois diziam que quem carregasse daqueles peixinhos na moringa jamais morreriam de sede, nem nunca lhes faltaria água. Eles colocaram alguns dos peixes no lago depois se abasteceram da água de que necessitavam. O escravo disse as mulheres que era da aldeia de Candundo em Angola na África. O povo do sertão aportuguesou Candudo, pracandunda. Pondo estenome no peixe, por soar melhor. O negro se estabeleceu naquela aldeia. Constituiu família com uma daquelas mulheres. Teve um sonho em que seus antepassados teriam dito que se trocaram candudo pra candunda três outras palavras o povo devia também substituir dali por diante: Aldeia chamariam de Povoado, Lago seria Açude e Montanha sempre chamariam de Serra.

Sol e Lua eram duas meninas. Nascidas gêmeas. Filhas de Maria Lúcia e José Francisco. As meninas não eram idênticas. Uma tinha a pele morena como o pôr-do-sol. A outra tinha a pele alva como uma lua cheia à meia noite.Sol era franzina e de cabelo castanho encaracolado. Lua de mais estatura tinha cabelo preto escorrido. Sol, como o astro que lhe inspirou o nome era extrovertida, pra não dizer supervitada, que o matuto apelidara de “esprevitada”. Lua era a personificação da palavra recatada, tímida.

Um dia, as duas meninas juntamente com Júlio irmão mais velho se inventaram desubir a serra do Candunda. Naquele dia voltaram da escola mais cedo porque houvera festa pelo dia das crianças. Quando os pais descobriram o desaparecimento ficaram desesperados. Todo o povoado se mobilizou na busca. Logo a noite caiu. O céu negro-azul chuviscado de estrelas piscou-piscou pra o sertão se regozijar de encanto. Os aldeões vasculharam pelas cercanias em bandos, abriram picadas na mata com fações e tochas, e nada.De repente alguém notou um imenso clarão vindo do alto da serra. Todos se dirigiram para lá. E qual não foi o espanto de todos, encontraram as três crianças de joelhos adoravam a virgem Maria aparecida sobre uma rocha. De um lado da virgem santa era dia, do outro era noite.O padre polonês ao ver a aparição entendeu sua missão e disse aos que ali se encontravam de hoje em diante, a padroeira de nossa aldeia será Nossa Senhora da Conceição porque apareceu aquelas três crianças. E era o dia delas.

Fabio Campos 10 de Abril de 2015.

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