O BARÃO E O DISCO VOADOR

26 abril 2014


Naquela segunda-feira à tarde, resolvi ir à casa do visconde de Sinimbu. Sentia quão era bom, e como, fazia-me bem estar lá. Não exatamente pela companhia do Lorde. O que me fazia tanto bem era tão somente estar naquele lugar. A cada vez que ia mais e mais consolidava o que eu sentia.

Não me ocorria, ter estado lá alguma vez, pela manhã. Porém era muito provável, que algum dia, tenha ido, ao alvorecer. Muito embora a obrigação, o dever a cumprir, acabaria negando a oportunidade de contemplar a paisagem. De dar-me o direito de perder tempo admirando as coisas corriqueiras que se desfilavam a cada momento a minha frente. De modo que a manhã, jamais causaria a impressão que o vespertino imprimira. Como se nos fosse negado o prazer de gastar o horário da manhã com o descompromissado compromisso duma visita. Como se as primeiras horas cobrassem dos seres domésticos, preocupação com as coisas a serem feitas. Tinha o período matutino, essa capacidade incrível de furtivamente furtar a atenção pros afazeres. Em especial, no miolo da semana, os denominados dias brancos. Não permitia a um senhor de engenho tamanho desperdício, de contemplar a beleza dum amanhecer. Sendo dele próprio cobrado, inexorável acompanhamento dos trabalhos. Às ordens a serem dadas aos feitores que acompanhavam os escravos que iam pro desfrute dos coqueirais, era de muito mais importância. Ouvir dos capatazes que supervisionavam os trabalhadores no plantio de cana-de-açúcar que tantos negros haviam fugido. E de outros tantos safos dos trabalhos na olaria. E saber sobre quantos teriam morrido de maleita porque passavam dias a fio dentro da lama. As cantigas cantadas nas matinas vindas da senzala, carregadas de sortilégios de entidades da mãe África. Era o modo de despedir-se do preto velho, morto a mais de uma semana. Os negros andavam cheios de angústias. Arredios com seus mandantes. E a noite o baticum dos tambores ecoava na mata num choro, lamento.

A casa dava o lado direito pro mar, muito lá adiante. De onde nascia, o rei de luz e calor. Ao realizar sua parabólica, tocava os gradis do jardim, os oitões. O esplendor de construção erguido num platô cujas portas e janelas frontais, olhavam pra um chapadão, emaranha de tantos tons de verde. Donde um dia braços humanos de negros e brancos abriram picada com característica de vala, e varou toda gleba. E sobre ela assentaram bitolas e grampos que sustinham vergalhões e deu-se estrada de ferro. O trem passava, as janelas olhavam: do trem pra casa, da casa pro trem. A construção de dois pavimentos tinha escadaria frontal que acessava um vão, circundo de parapeito. Três magníficas janelas de lado a lado ornavam o frontispício. Iam lá em cima, e desciam em portões de ferros em estilo gótico. Duas letras: “V.S.” uma na folha esquerda e outra na folha direita do portão, lá adiante do pomar amelhado de frutíferas. A porta central acessava a sala de estar. O piso de madeira untado de azeite, jamais permitindo, ao andar, que o peso do corpo fizesse ranger o lastro.

O visconde fora pra Europa, ter aulas de baruel e orfila. Dom João Lins Vieira Cansanção, apesar do nome, e dos pomposos títulos, era um homem novo, nem trinta anos tinha ainda. Desta última viagem a Paris e Alemanha voltaria à terra natal com o título de barão. O filho do capitão Manuel Vieira, formado em Direito pela Academia Jurídica de Olinda, gostava da vida na província. Das noitadas de festas que seus pais promoviam toda vez que volta de férias dos estudos nos estrangeiros. À noite, de sua casa dava pra ver as luzes dos lampiões do cais do porto de Jaraguá, lá na vila de Maceió. No pavimento inferior da casa ficavam os aposentos da criadagem, a dispensa, e a cozinha que tomava toda a extensão do lado leste do sobrado. A boquinha da noite farta refeição era providenciada para os convivas do barão, que estava pra chegar. A preta velha estava apreensiva, ficara sabendo que seu filho havia fugido. Não entendia o que se passava na cabeça daquele moleque. O boato da proclamação da libertação dos escravos, pela princesa Isabel, já se espalhara feito rastro de pólvora. Era só ter um pouco mais de paciência. Afinal o visconde era simpático a abolição. O capitão do mato saiu no encalço do negro, por conta própria, por puro ódio aos daquela raça.

Bela noite vaporosa e quente se havia. Uma chuva leve tinha molhado o mato ao cair da tarde liberando um cheiro bom de capim fresco. Um enfileirado de tochas acesas alumiava o terraço desde o portão de entrada até a escadaria que acessava o frontispício do imponente casarão colonial. Os pirilampos faziam a festa. Tudo ali, naquele momento, em muito, lembrava um ritual de casamento havaiano. Muito embora nenhum cerimonial de núpcias estivesse pra acontecer, tão somente aguardava-se a chegada do visconde, que chegaria ainda naquela noite. Na companhia de lindas donzelas, os convidados bebiam vinho no terraço. Deles preferiam passear pelo jardim. Ao som de um quarteto de músicos, que tornava tudo ainda mais alegre. Os mais velhos preferiam jogar gamão e pôquer na ante sala. Donde se ouvia leves estalos de língua ao deguste de modestas doses de uísque, vinte anos envelhecido. Fios de fumaça azulada saiam dos charutos subiam, e subiam. Indo impregnar de fumo e nicotina o lustre de cristal pendido do teto. Uma pintura, a óleo, de busto do barão olhava sereno pra outro quadro, duma gravura náutica na parede do lado oposto. Numa mesa enorme com forro branco, requintados petiscos. Um leitão jamais tocado parecia dormir sobre a bandeja, ornado de frutas e legumes. O capitão providenciara para a chegada do visconde barão a queima de fogos de artifício. Porém nada daquilo aconteceria. Ao aproximasse dali, o barão liberou o cocheiro. Passou a conduzir a carruagem e na companhia de algumas meretrizes trazidas de Paris, ganhara o caminho da praia. Amanheceram bêbados e nus. Aos gritos, recitavam poesias em francês. Os nativos que a tudo presenciara batizariam o local de praia do francês.

A igreja do Santo Rosário estava lotada. Naquela ensolarada manhã de domingo celebrava-se a missa da páscoa. Quinze dias, exatamente duas semanas, separava aquela cerimônia clerical, do episódio a beira mar. O solene som do órgão solfejava cânticos, o santo ofício. Padres, bispos e presbíteros em seus paramentos. Sentados diante do altar, distribuíam-se em meia lua, conforme a hierarquia, do centro para as pontas. O tilintar do castelo batendo nas correntes do turíbulo, o cheiro de incenso perfumando toda a nave, a assembléia. O coroinha segurando a franja do véu umeral, a reta guarda do sacerdote, enquanto era incensado o altar. A mitra apontando pra cúpula eclesiástica. O recital, os cânticos tudo em latim pronunciado. De repente, lá na porta da igreja, uma figura grotesca surgiu. Era o capitão do mato.

Aos gritos de “-Senhor Barão!” entrou na igreja. Em vão tentaram interpô-lo, porém pararia somente aos pés do barão. Lívido de espanto, assim como toda a igreja, Dom João viu o terror nos olhos daquele seu empregado. O rosto crispado de medo, relatou-lhe o seguinte: “-Meu senhor! Estive no encalço dum negro fujão. A dois dias atrás, o encontrei. Era por volta das três da tarde quando o coloquei sob a mira da minha espingarda. Eu ia atirar, quando do céu apareceu uma grande carruagem de ferro, sem cavalos, nem cavaleiro. De lá, saiu um facho de luz que desceu até o negro, e sugou-o pra lá dentro. E A imensa nave sem vela que flutuava no ar, se foi!” Dito isso desmaiou.

Duzentos anos se passaram, e a nave espacial voltou. Mansamente veio vindo, veio vindo, e pousou ao lado da casa do Barão de Sinimbu. A aprazível casa do primeiro ministro da justiça, pioneiro em defesa do ensino primário e secundário patrocinado pelo governo. Depois de sua morte foi cedida como espaço para os professores se reunirem.

Fabio Campos

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