NEGRO LINO

14 agosto 2015


O dia nem bem havia nascido. Mas de certeza em trabalho de parto estava. Vinha vindo, vinha vindo. As entranhas da terra parindo, dando à luz, magnífico ser, sol nascente. A neblina láctea a derramar-se dos seios da montanha amamentado. Dos arroios das quebradas do sertão se nutrindo. Pelo sal da terra batizado. Sob as grinaldas, risonho e límpido, véu de orvalho, suspenso nas teias de aranha. Sertão impávido colosso somente dele (e nele) nasce o dia realmente.

“Tudo em vorta é só beleza

Sol de Abril e a mata em frô

Mas Assum Preto, cego dos óio

Num vendo a luz, ai, canta de dor”

O que vamos contar vem dum tempo lá de trás. De um daqueles anos que rabiaram a década de trinta Ano entrançado de sucedências ruins, uma atrás da outra. Por essa época perambulava em riba do couro do mundo um preto chamado negro Lino do Pedrão. O negro era assim um amontoado de músculo, encima duma cabeça que de tão feia só podia ter sido moldada pelas mãos do ‘Coisa ruim’. Brabo que não precisava muita coisa pra criar uma arenga. Nas rodas de conversa diziam que o nome Lino vinha de Virgulino. E o peste gostava de ser comparado a Lampião. Seu verdadeiro nome era Rosalino, que odiava e, preferia que chamassem de Nêgo Lino mesmo. Vem desse tempo o costume de se ajuntar o nome das pessoas ao nome do lugar donde vinha. Pedrão era um arruado fincado entre o Sítio Capim e o Gameleiro. Muito comum também agregar ao nome, o nome dos familiares de mais recurso, pra se ter algum reconhecimento, algum valor. Por exemplo, dona Adélia de Seu Canuto, Leônidas, neto de Seu João Lola, Mara Célia irmã da professora Dália. Dona Amália de Seu Doroteu, pais de Domingos, Mara Célia e Dália. E tinha Zé Costa, Enéas, Seu Esaú, e alguns outros mais, estão por aí porque gostam de prosear boa prosa, mas nem garanto que vão entrar na história. Um dia, no meio da feira um repentista vendedor de livreto de cordel tirou uma treta com o negro. Dele tirou estes versos:

“Nêgo Lino aqui chegado/ Nêgo Lino aqui chegou/ Receba essa tela/Tua venta é de esparrela/ Parece duas gamelas/ Brilha mais que Furta-Cor/ Os olhos são duas bolas/ Vão pular já da cachola/ Pregaram mais não colou/ Essa coisa que feiúra/ A beiçola ele pendura/ É uma coisa que avessou/ Toda vez que o bicho fala/ Junto com a voz exala/ Dum cassáco o fedor/ De tuim esse cabelo/ As orelhas dois bueiros/ Parece dois armador/ Quando ele ri faz careta/ É a imagem do capeta/ Mais parece um tumor/ As feição é dum macaco/ O mau cheiro do suváco/ Derruba quem já andou/ De parracha sua mão/ A voz rouca dum Barrão/ Cabeça de Cololô/ Os braços são dois cacetes/ Balanga num cacuête/ Parece que se soltou/ Sentado é uma armada/ De cóca uma presepada/ Brinquedo que desmontou/ É o cão chupando manga/ A besta fera de tanga/ Um mamulengo a motor/Dois desse vira uma Túia/ O que cabe numa cuia/ Na certa tem mais valor/ Os peitos são duma porca/ E o bicho quando se invoca/ Vira a Nêga Fulô.”

Gargalhada geral da roda de ouvintes. O negro saiu bufando, na tolda de Tonha Fateira pegou uma garrafa de cana tomou todinha sem tirar a boca do gargalo. Os olhos viraram duas brasas de fogo, assoprou álcool pelas ventas e partiu no encalço do embolador. A raiva que tinha dava pra matar o repentista de mãos limpas. Quando viram a bagaceira sete homens se atracou com o brutamontes. Mas só de olho de machado puseram-no a nocaute.

“Tarvez por ignorança

Ou mardade das pió

Furaro os óio do Assum Preto

Pra ele assim, ai, cantá de mió”

Nesse tempo, as coisas do mundo andavam assim tão serenas. Na caatinga do sertão a cor prevalecida era a cor do barro, e o verde das catingueiras. Nos vilarejos não tinha muita vistosidade nas cores. Tudo era como esmorecido. Por conta do material de que tudo era feito, de madeira, ferro, zinco, estanho, porcelana, couro e barro. As pessoas mais influentes da vila Seu Canuto e dona Adélia tinham casa de comércio, muitas terras e gado, ceifavam com aviltamento, algodão, feijão e milho. Tudo a se perder de vista. O único sobrado existente na vila era deles. Não eram poucos os que gostariam de entrar além dos portões daquela casa. Comentava-se como tanta coisa bonita havia pra ver além daqueles muros. O mobiliário era todo de madeira bem trabalhada. Dava gosto ver a cristaleira, uma mesa com um conjunto de cadeiras bem torneadas. Uma espreguiçadeira, um violino repousado sobre a cômoda. Belíssimos quadros, pinturas a óleo de caçadas equestres, nas paredes. Um cabide do tipo pedestal, o acabamento, o verniz, tinha a graça de uma mulher esbelta. Uma bengala de mulungu e cabo de madrepérola. Nas casas mais modestas o cabide era de parede do tipo sanfona. Um baú todo trabalhado no couro. Baú do pobre era chamado de burra. Um camiseiro de jacarandá, um pilão de cedro, uma espingarda “papo-amarelo” por sobre os retratos da família impondo respeito. O caibrado da varanda todo de umburana de cheiro pra não dar cupim. O ferro do portão com duas camadas de tinta. O estilo barroco e arcádico retorcia-se nos corrimões das escadarias. Copiado das sacadas dos camarotes dos teatros da capital. Nos portões suntuosos dos jardins, estatuetas de querubins e ninfas na fonte de água. A cal e o índigo sobrepujavam nas muradas e caixetas, nas eiras e beiras, graciosos lampiões a cada quina. O estanho ia a cozinha e o quarto, nas torneiras, nos urinóis, nas escarradeiras de porcelana. As joias de ouro, os dobrões de prata encerrados nos cofres. As franjas das cortinas os quadros com molduras de carmim.

“Assum Preto veve sorto

Mas num pode avuá

Mil vez a sina de uma gaiola

Desde que o céu, ai, pudesse oiá”

Negro Lino contava que tinha umas visões esquisitas. Alguns momentos pra ele nada fazia sentido. Do jeito que se apresentava parecia que tudo estava de cabeça pra baixo. O mar um dia lhe apareceu, lá encima no firmamento. Estupendo mar sereno, revolvendo suas ondas tranquilamente, se comportando como estivesse cá embaixo. Uma gota sequer caía lá de cima. E de repente viu despencar uma chuva de peixes. -Chuva de peixes? Perguntou Casteado. -Isso mesmo? –E caiu onde? -No céu? O céu estava cá embaixo. Tudo incrivelmente incomum de se acreditar. –E a donde ‘vormicê’ apoiava os pés? -Não havia onde… Onde devia estar o chão só havia o nada. Terra firme não havia, inexistia lugar onde pudesse firmar os pés. E afirmou: -Não há nada pior pra uma criatura que tem dois pés, não ter onde sentar a planta deles. Aquela imensidão de tudo era um abismo só. Diante daquela situação, sentia náusea, talvez labirintite, ânsia de vômito. Lembrou que não estava no seu corpo, portanto não tinha estômago. O corpo, massa muscular, sangue bombeado pra o coração adrenalina, sudorese, taxas de triglicerídeos, colesterol alto. Não precisava se preocupar com essas coisas naquele instante. Era sua alma vagando. Só tem uma coisa que o espírito fora do corpo físico não consegue se livrar: do medo.

“Assum Preto, o meu cantar

É tão triste como o teu

Também roubaro o meu amor

Que era a luz, ai, dos óios meus

Também roubaro o meu amor

Que era a luz, ai, dos óios meu”

“-Outro dia eu vinha pela estrada do Caboclo. O sol já ia derreando por acolá, e um cachorro passou por mim, sem tirar o cigarro da boca deu boa tarde, e tossiu uma tosse seca. “-Mas era um cachorro, cachorro mesmo? Desses que late e mija no poste? “–Desses mesmo aí sim senhor! Até um jumento que estava lá no cercado, parou de comer capim olhou pro lado de cá e disse: -Cuidado compadre pra essa tuberculose não virar uma tosse!” Ah! Me desculpe! Mas assim já é demais! –A pois eu juro por essa luz que alumia os meus olhos! –Homem! Tu num diz isso que Deus castiga!”

Quando foi noutro dia, lá vinha Nêgo Lino da feira. Vinha que vinha zonzo pela estrada do Pedrão. Bêbado que só um guará. E não é que foi topar logo com uma ticaca choca! Já era de noite, tudo pardo. Os dois se atracaram, e né que o troço da ticaca lhe estraçalhou a cara, e lhe arrancou um olho fora. Nisso vinha um carro de boi. Ao ver aquela presepada o carreiro meteu a vara de ferrão pra cima, e acabou acertando o outro olho de nêgo Lino. Selando assim sua sorte, a de pedir esmola na porta da igreja. Fazia isso cantando moda de viola que falava de passarinho sofredor.

Fabio Campos 08 de agosto de 2015.

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