Finados

9 novembro 2013


Dia de finados é dia bom pra ler um livro. No dia dos que já partiram, é dia de pensar na vida. Dia quente de verão, dia bom pra refletir. O sol nasce mais cedo. O mormaço, o calor de cedo começado, vem dizer que não é dia muito bom pra ir ao cemitério. Dia de mistério. Dona Maroca morava na Maniçoba. Todo ano na véspera de finados, ia com seu neto Marcelo até o campo santo, lavar a catacumba da família. Lavava, arrancariam as ervas daninha, depositaria um ramalhete de flores, e orações. E dizia a sim mesmo, finados é um dia que está se perdendo no tempo. Onde já se viu um dia santo como esse, a gente passa nas ruas, nas praças, os jovens estão bebendo, se divertindo, o som do carro ligado a toda altura. -Santo Deus! Aonde esse mundo vai parar?

Na casa de Seu Benjamim, ele fazia questão de ir com a família inteira. Dona Isaura acordava bem cedinho fazia café reforçado, na mesa um cuscuzeiro fumegante, uma jarra com leite, num tacho enorme ovos de galinha de capoeira fritos. Pães num saco de pano com renda de filó nas bordas. Manteiga, uma panela de macaxeira fumaçando no fogão. E o cheiro de charque torrado ia lá longe aguçar os olfatos dos viventes, e dos que já morreram que vagavam errantes. Intumescido o focinho dos felinos, e de saliva se enchiam os dentes dos caninos. Dez filhos, todos eles iriam. Lucinha, uma das filhas moça de seu “Bêja”, naquele ano, não pode ir porque estava menstruada. Moça “naqueles dias” devia evitar entrar em cemitério. Os mais velhos diziam que não era bom, apenas diziam, não explicavam porque, ai de quem perguntasse. Alguém arriscava dizer que se a moça tivesse perto de suspender o fluxo, se entrasse lá, a regra, acabava se estendendo por mais dias. E isso era o bastante para quem queria uma explicação. Dona Maria José a parteira morava pra lá do bebedouro, todo ano ia fazer sua penitência. Naquele ano deu de aparecer uma ferida na perna, da sua erisipela recorrente. Foi, mas ficou no portão, não entrou. Tinha medo que a ferida demorasse a sarar. Assistiu a missa, de longe. Fez sua oração pros seus entes queridos, pensou com saudade em Durval, seu falecido marido que era marceneiro, um acidente vascular cerebral o levou, já fazia três anos, rezou. E sua reza fez de tudo pra subir aos céus, sufocada pela algazarra reinante no mundo dos vivos. Os vendedores de vela, e do sorveteiro a toda altura anunciava pros viventes, e os mortos no seu dia ouviam, porém não sentiam os sabores dos picolés que tinha na caixa de isopor a tiracolo.

Adonias e Zé Cutia eram amigos, dois serventes de pedreiro, gostavam de beber cachaça todo dia. A depender da ocasião, o dia todo. Encontravam-se na bodega de Ciço “Pé Cotó”, bem no meio da ladeira da Rua Santa Luzia. Maria do Carmo fazia-lhes companhia. Nos vigores da juventude Do Carmo fora linda meretriz. Os melhores anos de sua vida vivera no baixo meretrício. No Cabaré de Suné, uma daquelas casinhas acanhadas, que margeiam o aterro da Avenida Pancrácio Rocha. A música alta, copos cheios de cerveja. O perfume, a muito custo conseguia disfarçar o cheiro do lamacento lodaçal, em que transformaram o Camoxinga, lá no bairro Artur Morais. Depois de velha, Do Carmo virou macumbeira e ganhou o apelido de Maria Paçoca. Naquelas mentes encharcadas de vapores de álcool, surgiria um plano macabro. Na véspera do dia de finados, resolveriam que os dois homens, iriam invadir o cemitério pra decapitar um defunto. Segundo a rameira, num ritual de magia negra, a cabeça do finado, imploraria para que lhes devolvesse o corpo. E eles prometeriam que só faria o que pedia depois que relatasse os números da loteria, e os três ficariam ricos.

Depois de escalarem o muro, eis que estavam no cemitério. Já sabiam direto aonde ir. Eles mesmos tinham ido pro sepultamento de um ancião, um agricultor, que se chamava Pedro Cândio e morava na Rua de Zé Quirino, falecera naquele dia. Zé Cutia levava um facão e uma enxada, Adonias portava uma lata de querosene vazia pra colocar o sinistro dentro. Tudo era breu, acostumados à escuridão vislumbravam os contornos das tumbas arribadas de cruzes. Delas erguidas em alvenaria, delas gradeadas de ferro, delas nuas, somente um montículo de barro. E as mães piedosas, mais tarde acenderiam velas, e chorariam seus filhos ali sepultados. Se criança ganhavam o nome de anjinhos.

Seguiam, e o que reinava era o silêncio. O álcool anestesiava-lhes os pensamentos, o que ajudava a disfarçar o medo. Ignorando o efeito do anidro, os sentidos lhes davam nos nervos. E qualquer ruído, além dos produzidos por eles mesmos, respiração ofegante, chiado dos chinelos e deglutição de cachaça, era motivo de calafrio. Pra chegar até a sepultura de Seu Pedro Cândio eles passariam em baixo de um pé de castanhola. Era um pé amêndoa razoavelmente pequeno, seu tronco fino e copa reduzida, lembrava a silhueta duma avestruz gigante, no meio duma cidade fantasma. De repente entre uma catacumba e outra, os dois homens se depararam com um enorme lobo negro, de pelo viscoso e eriçado. O grotesco animal nem parecia estar em posição ameaçadora. Sequer dava pra ouvir o rosnar de sua ira, ou o ranger dos seus dentes, nem a baba viscosa a correr-lhe pela boca. Porém o que fez os dois viventes, no campo dos mortos, se encherem de horror, era que no lugar dos olhos, o cão tinha duas bolas de fogo. E havia algo preso a sua boca. Isso mesmo era uma cabeça humana! O maldito trazia a cabeça de Seu Pedro Cândio presa aos dentes pelos cabelos.

Os infelizes lacaios, largando o que traziam, saíram em desabalada carreira. Tanto era o medo que os cegava, e já não sabiam pra que lado ir. Saltavam as catacumbas, feito trôpegas gazelas desengonçadas. Pro lado pra onde estavam indo havia um velho poço, desativado, coberto com velhas tábuas. Um e outro pisaram em cima, com o excesso de peso as tábuas cederam e os dois foram tragados pela boca do poço. Engolidos por mais de vinte metros de abismo, em trevas e água podre despencaram. No fundo pontiaguda vara de vergalhão os aguardava para o abraço da morte, e os espetou dum lado a outro. Com o impacto abriu-se enorme fenda donde jorrou sangue aos borbotões. Nem se deram conta que transpassados pelo ferro pareciam nacos de carne num espeto pronto pra assar no fogo. Tinham pressa de fugir dali, se desvencilharam do ferro, porém perceberam que seus corpos permaneciam lá, inertes. Não importava que ficassem então, precisavam sair dali. E escalaram a fétida parede de pedras do poço. Ainda deu pra ver ratazanas enormes chegando sobre eles mesmos, atraídas pelo cheiro de sangue.

Ainda era madrugada quando chegaram a casa de Maria Paçoca. Ela já havia iniciado os preparativos para o ritual de bruxaria. Várias velas acesas no chão formavam um cinco Salomão, no centro vários objetos grotescos, cabeça de caveira, dentes de animais entre outros. Eles entraram, já não precisavam que ninguém lhes abrisse a porta. Aproximaram da mulher, que não dava conta de suas presenças. Em vão tentaram falar-lhe sobre o ocorrido, simplesmente ela não os via. Com raiva começaram a derrubar o que havia na mesa, cartas de tarô, uma estatueta do preto velho voou sobre a cabeça da mundana. A do capeta vermelho sorrindo caiu e partiu o pescoço. A garrafa de cachaça tombou e um incêndio se alastrou rápido. As labaredas num segundo consumiu o forro da mesa e se espalhou como agilidade. Maria Paçoca sob o feito de maconha, em vão tentava salvar seus malditos relicários de praticar magias. Nem se deu conta que o fogo lhe lambia as vestes, e seu cabelo em chamas dava-lhe o horripilante aspecto de uma medusa flamejante. Pra finalmente tombar e ir aos poucos vislumbrando entre as chamas seus dois amigos. Sem se darem conta que agora eram finados.

Fabio Campos

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