CAVALO DO CÃO

9 março 2015


Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Everaldo nasceu no sítio Mulungu. Os verdes anos, os melhores de sua vida, viveram-nos lá. Ao lado dos pais, e seis irmãos. Muitos anos depois, casou e teve que partir. A tapera onde morava levou, consigo, dentro dos olhos levou. E quando lhe invadia a saudade, as lágrimas vinham – com gosto de barro vinha – da velha casinha de taipa onde nascera. O cheiro de catingueira engendrou na pele. Tanto, que quando realizava trabalho pesado, suava suor com cheiro de mato. O sertão, pra onde quer que fosse levava no corpo, nos momos, trejeitos. Permaneceram-lhe pra sempre, as manias dum sertanejo legítimo. Da mãe caatinga às manhas, eternamente parte de si. Se dependesse dele nunca sairia. Transmitiria por herança, pros filhos, assim esperava. Uma folha de juá mastigava de manhãzinha. Depois do café um talo de capim entre os dentes. Dum canivete jamais se apartava.

A vida na cidade não tinha graça nenhuma. À tardinha, de cócoras na porta de casa. Iam às vistas em busca do pôr-do-sol. Desmanchava um cigarro manufaturado, só pra ter o prazer de refazê-lo, num pedaço de palha de milho sequinho. Era uma das formas de voltar aos bons tempos da roça. Estudos fora segundo plano, sequer terminaria o fundamental. A leitura pouca, dera ainda pra conseguir a carteira de habilitação. Um emprego de motorista da prefeitura veio através do padrinho, o vice-prefeito. Os tempos de roceiro foram ficando cada vez mais distante. Terno passado de infância e juventude, que jamais esqueceria. Conheceu Ana Lúcia brava sertaneja com quem casaria. Três filhos machos Vandeilson, Vanderlanio e Vadiclebson. A depender dela, mais um filho viria. No caso uma menina, pra encerrar a carreira. E veio a gravidez desejada, mas no quinto mês de gestação acontecimentos estranhos passaram a ocorrer dentro de casa. A caixa d’água do banheiro rachou e desabou causando alvoroço. Nesse dia, Ana foi parar no hospital, mas foi só um susto. Exatamente um mês depois um curto-circuito na tomada do ventilador dentro quarto, provocou um incêndio, e queimou todo o enxoval do bebê que ainda estava pra vir ao mundo. Já ia o sétimo mês da gestação, e um estouro da válvula de segurança duma panela de pressão, causou-lhe mais um susto grande. Dessa vez foi forte demais, e Ana acabou perdendo a que seria a única filha mulher.

As coisas aos poucos foram tomando seu rumo. Determinados acontecimentos são como um puxão no freio de mão, nas estribeiras do mundo. Mas não demorava muito, e a bola azul de carregar gente nas costas, continuava sua alucinada viagem. Vagabunda, a dar voltas, e mais voltas, em torno do sol, enquanto redemoinhava sobre si mesmo lentamente. Os filhos de Everaldo reféns do processo evolutivo da espécie, pouco a pouco iam definindo a estatura dos seus corpos. Ia o ciclo da vida cumprindo seu papel. Uma coisa dava pra perceber nenhum dos três puxara ao pai. Era de se esperar que filhos de sertanejo viessem a gostar de passarinho cantador, na gaiola. Pegar alçapão e alpiste e ir lá pra várzea do riacho. Petecar ave de arribação com balas de barro de louça, endurecidas, quaradas ao sol no paredão do açude. Armar aratacas e arapucas pra pegar preá e mocó. Nas noites de lua fachear codorna e nambu. Gostar de ouvir história de Pedro Malazarte, Cacão-de-fogo, Mata-Sete e Camões. História do compadre e da comadre que traíram seus parceiros e viraram fogo corredor. Àqueles meninos se quer se animavam correr vaquejada, correr numa corrida de argola, ou na corrida de mourão, uma pega de boi no mato nem pensar. Sentir prazer de paramentar-se com as vestes próprias do vaqueiro: perneiras, peitoral, botas guarnecidas de esporas. Ostentar vistoso chapéu de couro, jibão, chicote e luvas de couro cru. Montar um belo quarto-de-milha. Se posicionar na portinhola do jiquí ladeado dum bom bate-esteira. Correr a derrubar o boi na faixa, e ouvir o locutor anunciar “-Valeu boi!”. Tirar um som dum berrante, aboiar, tirar um verso, ao badalar dum chocalho. Tirar umbu, na semana santa. Assar milho na fogueira do São João. Tirar maturi de caju, quando vinha o fim do ano. Nenhum dos três teria dado ao pai, o prazer de gostar das coisas do mato.

É certo que Everaldo e Ana queriam mesmo que os meninos estudassem, e se formassem. Pra não suceder com eles o que lhes ocorrera, emprego a custa de favores. Da promessa dum político Ana tornou-se serviçal do Tribunal de Justiça. Vandeilson o mais velho, conseguiu um emprego de técnico de informática no município, aproveitou o embalo e casou. Os outros dois em casa dos pais continuavam. Como não tiveram o mesmo tipo de criação, fora de suas presenças costumavam caçoar o jeito caipira dos pais. Pior, davam-se o direito de ralhar palavras que eles pronunciavam ao jeito simples do linguajar matuto. Vanderlanio chegou um dia dizendo que ia fazer uma tatuagem dum unicórnio alado no braço. O pai ao ver o rascunho do desenho escandalizado disse: “-Prefiro te ver morto! A ver um filho meu virado num cavalo do cão!” O rapaz não se conteve, caiu na gargalhada ali mesmo, na frente dele. Levou uma tapa por cima do toitiço que precisaria de compressa pra aliviar a luxação. Naquela noite, mais calmo Everaldo, chamou Vanderlanio, e foi ter uma conversa com ele. Disse-lhe que quando tinha a idade dele filho respeitava o pai. E falou de alguns episódios que lhe ocorreu quando rapaz. “-Uma terça-feira de carnaval, seu avô soube, lá no sítio Mulungu, que eu estava na vila bêbado, todo melado de pó ‘parecendo um macaco’. Foi me buscar. Voltei amarrado, atravessado na garupa do cavalo. Levei uma surra de urtiga. De outra vez, foi bater na escola porque soube que eu tinha brigado com um menino. Nesse dia, fui amarrado no tronco daquele pé de mulungu que tem até hoje atrás de casa, apanhei com o relho de amansar os bois de arado, cada lapada voava uma tira de couro das costas.

“-Sua avó, era uma mulher muito sabida. Gostava de ler, e lia muitos livros. Chegou a trabalhar como professora pra Delmiro Gouveia, o homem mais rico do sertão na época. Naquele tempo já se falava duma seita chamada Nova Era, que seria combatida pela Ordem dos Cavaleiros de Cristo, também chamados de Cavaleiros Templários. A Nova Era, que pregava a anarquia, o comunismo, a heresia e praticavam sodomia. Tudo coisa do demônio. Seus seguidores defendiam a negação de Cristo, dos Evangelhos, da bíblia, dos sacramentos da igreja. A favor do enriquecimento a qualquer custo, mesmo de vida inocentes, em rituais satânicos. E se reconheciam uns aos outros, por tatuagens no corpo, justo figuras como esta. Eles estão presentes em grandes empresas, em bancos internacionais, partidos políticos, emissoras de tevê. As cores, sempre o preto e o branco. Outro dia fui um aniversário do filho de um amigo meu, e fiquei chocado, ao ver que ao invés de cores alegres, de desenhos animados. Toda decoração eram imagens macabras: cabeças de caveiras, cobras, aranhas, esqueletos. Deram de presente ao filho, de apenas oito anos, o direito de fazer uma tatuagem quando completasse onze, que já havia até escolhido o que tatuar. Não se passaram mais de seis meses depois da tatuagem, e a criança contraiu uma doença que nenhum médico descobria o que era. Em menos de um ano morreu. Depois o pai caiu em depressão, matou a mãe e se matou. O demônio teria vindo buscar, mais dos seus cavalos. Precisava para cavalgá-los nas profundas do inferno. Viu aquelas execuções que apareceram na televisão como estavam vestidos os executores? É no Islã que fica a sede da seita. Pode pesquisar “Cavalo do Cão” e você mesmo vai descobrir.”

Vanderlanio pesquisou sim senhor. Mas o que encontrou foi: “Cavalo do Cão, nome científico “Pepsis ruficornis” da família dos pompilídeos é um inseto da classe das vespas. Locomove-se tanto no ar, como na terra. Sua picada é bastante dolorida, a peçonha age em questão de milésimos de segundo. Chega a causar paralisia do membro atingido. É predador natural da aranha. Ataca o inseto inimigo, com sua picada paralisa-o. Sua presa serve como alimento dele e de suas larvas.”

De nada serviram os conselhos de Everaldo. Primeiro Vanderlanio, depois os outros dois irmãos. Pois acharam legal, e cada um fez, nos braços, pescoço e costas, pelo menos três tatuagens. Cobras, raios, feras e monstros que eles mesmos não tiveram o menor interesse de saber o que simbolizavam. Um domingo desses duas Vans foram contratadas, pra irem ver o time do Canarinho, o de maior destaque no sertão, jogar com o alvinegro, maior da região fumajeira, no agreste. Os dois transportes alternativos acabaram se envolvendo num grave acidente. Cinco pessoas morreram. Três deles os filhos de Everaldo. Os outros dois também tinham tatuagens.

Fabio Campos 02 de Março de 2015

Comentários