Artigo: Deus e o diabo na Terra são um só 

13 jul 2018 - 15:00


Foto: Geralt / Reprodução / Pixabay

A inútil tentativa de separar deus do diabo é fruto do nosso maniqueísmo fanático, ignorância gerada pelo puritanismo hipócrita dos que se assemelham a túmulos caiados.

Deus, em qualquer das formas que possamos nele crer, é amor e ódio, é ignescente lava vulcânica e montanhas de eterno gelo glacial. Deus é doce mel e amargo fel, é o Bem, o Mal e as nuances que os confundem.

Tudo depende apenas da forma, da imagem e ideia que fazemos do nosso deus pessoal e intransferível. Com isso, não estou afirmando que deus é uma invenção humana, refiro-me apenas à maneira como cada um de nós o percebe.

Essa história de que o Bem sempre vence o Mal é balela, feliz apoteose de novela épica. O Bem não vive em conflito com o Mal, o Bem e o Mal se complementam e se dispõem numa só forma. O conflito é nosso, é íntimo, não é externo. É de dentro para fora; não, o contrário; e ele se dá em função dos nossos interesse pessoais, imediatos, inalienáveis. A distinção entre um e outro está condicionada apenas à nossa consciência, ao que dela fizemos, ao que nela plasmamos, mas isso não quer dizer que podemos tratar essa questão atribuindo-lhe uma condição relativa, pois o Bem e o Mal se fundem e são inseparáveis, são objetos, sujeitos, não são qualificações de objetos, de sujeitos, como o que consideramos bom ou mau.

Por necessidade fundamentada no nosso atrasado estágio evolutivo, inerente ao processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento do saber e dos princípios éticos, podemos até personificar deus, levando em conta a hierarquia necessária ao equilíbrio funcional de todas as coisas. (“Ninguém vai ao Pai, senão por Mim” João, 14,6). Mas o verdadeiro Deus, princípio de todas as coisas, não é alguém. Deus, por uma de suas infinitas definições, é a soma dos potenciais existentes em todas as coisas, no âmago da matéria, em qualquer de suas formas, sejam minerais, vegetais ou animais; e acrescente-se, acima de tudo, os potenciais disponíveis na alma humana, a nossa capacidade de sentir, pensar e agir por conta própria, por livre-arbítrio diante do que está suscetível aos efeitos de nossa ação.

Deus impessoal é a Lei Universal, sobre o que conhecemos muito pouco, ou fazemos questão de conhecer apenas os seus introitos, mesmo assim interpretando-os conforme o interesse de nossas semiconsciências, apenas o suficiente para nos odiarmos uns aos outros, mas fazendo caras e bocas de amor ao próximo.

Conforme preceitos bíblicos, “Nem uma folha cai sem que seja a vontade de Deus”. Acredito que o mais correto seria dizer que “Nada acontece sem a permissão de Deus”. “Vontade” é força que realiza desejos, ou que se empenha para realizá-los. Deus não deseja. Deus é a Lei Universal, completa, perfeita e imutável. “Permissão”, neste caso, é conquista da liberdade de ação (boa ou má). “Permissão” aqui não significa o aguardo de ordens superiores, mas a conquista das condições favoráveis à ação. Com a permissão para agir, com a disponibilidade dos elementos adequados ao empreendimento da ação, passamos ao exercício do chamado livre-arbítrio, que se manifesta de acordo com o estágio da formação do caráter personalista de cada um de nós.

A permissão divina não pressupõe conivência de Deus, ou sua incondicional anuência, com o ato praticado. Deus (a Lei Universal) faculta as ações para que os homens testem a si próprios. Observe que Jesus, ao nos ensinar a orar, não recomendou que pedíssemos a deus que não fôssemos tentados, mas que não caíssemos em tentação. “Não nos deixeis cair em tentação.” É como se pedíssemos permanente inspiração e alerta ao Pai para superar as nossas más inclinações e, assim, nos livrar das permanentes tentações concernentes aos prazeres mundanos (aqui entendemos o Pai Nosso, sobre quem Jesus falou, como sendo deus personificado).

“Nunca me corrompi!”, diria o homem que nunca sofreu a tentação planejada por um corruptor externo, alguém que poderia lhe oferecer privilégios em troca da liberalização do vírus da desonestidade nele incubado, como qualquer agente infeccioso que percorre seu corpo em busca de oportunidade para se manifestar. Pessoas que ainda não tiveram oportunidade de provar para si mesmas que não se renderiam a propostas indecentes e se autoproclamam honestas até no controle de suas mais irreprimíveis emoções, estas são como uma virgem numa ilha deserta: quando o cio lhe provoca a fúria do desejo sexual, só lhe resta masturbar-se, ou seja, não extravasa sua voluptuosa sensação com alguém, até de forma desregrada, porque não tem com quem.

A ocasião não faz o ladrão, apenas desperta a tendência à ladroagem, e se esta inclinação não for reprimida (pela lei e pela consciência), o cidadão se desvela como ladrão.

A permanente luta para domar o Mal dentro de nós mesmos. Esta, se não é a única, é, provavelmente, a mais importante virtude humana.

Se algum de nós já não sente qualquer impulso para a prática do Mal, conforme os conceitos ditados pela nossa consciência, contrapondo-o ao que possa vir a ser o Bem, então esse alguém já não pertence à categoria humana, sublimou-se, já alcançou esferas muito mais elevadas, extrapolou a perfeição moral relativa à vida na Terra. Se estiver encarnado aqui entre nós, encontra-se na condição de missionário divino; mas como um missionário divino poderia conviver entre nós, almas potencialmente corruptas? Seria agindo como um ser ainda em conflito com a formação do seu caráter, como nos encontramos aqui na Terra? Não. Ele seria apenas compreensivo, entenderia a fraqueza humana e, por isso, compreenderia o criminoso, mas sem justificar ou tolerar o crime cometido.

Certa ocasião meu analista me perguntou: “O ser humano ri porque se sente feliz, ou se sente feliz porque ri?” “Choramos porque ficamos tristes, ou ficamos tristes porque choramos?”

Naquele momento tive o impulso de dizer que rimos porque nos sentimos felizes e choramos porque ficamos tristes, porém me contive, pois outros pensamentos assomaram à minha alma semipensante: “O homem fica feliz por suas vitórias no campo de batalha, ou pela derrota do seu adversário?” “Triste porque perdeu a batalha, ou porque aquele adversário venceu?”

Aparentemente, tudo isso aí tem o mesmo sentido, mas as aparências enganam.

Aquele que se autoproclama honesto até no controle de suas mais irreprimíveis emoções diria que sua felicidade se concentra totalmente em suas próprias vitórias, conquistas, feitos, méritos e supostas virtudes pessoais. Jamais admitiria que um prazer mórbido insiste em comemorar o fracasso alheio, ou chorar pela vitória de outrem, seja a glória de um dos seus desafetos ou, pior, pelo triunfo de um daqueles a quem ele chama de “amigo”. A inveja corroendo-lhe a alma.

Voltando à vaca fria

A crise existencial nossa de cada dia pode estar relacionada com esta nossa tentativa de separar deus do diabo, aplicando conceitos pessoais, semiconscientes, sobre o Bem e o Mal, sem considerarmos que, dentro de nós, um não existiria sem o outro. Num mundo só de luz, não adiantaria alguém tentar explicar o que viria a ser a sombra. Também num mundo somente de sombras, seria inútil alguém tentar explicar o que possa ser a luz. “Quem não soube a sombra não sabe a luz” (Taiguara, em “Teu sonho não acabou”).

A coexistência dos opostos determina a unicidade das coisas. Deus é único. Deus em separado do diabo é fruto do nosso preconceito.

Deus personificado é infinitamente múltiplo, portanto, único (“Vós sois deuses”, João, 10:34. “Vós podeis fazer o que eu faço e muito mais” João, 14:12). Somos deuses porque há em nós um latente potencial para realizarmos maravilhosos feitos. Tantos já foram realizados porque muitos de nós já consegue fazer bom uso de uma ínfima parte desse potencial.

Mas deus impessoal não é alguém nem é ninguém. Deus é a Lei Universal, única, perfeita, imutável, e se manifesta em nós pela nossa consciência. Todos temos noção do que venha a ser o Bem e o Mal, mas um ou outro aflora em nós, em nossa consciência imediata, como nos convém, na forma do que nos seja ou pareça bom ou mau, o que não raro confundimos com bem e mal.

Atração e repulsão ou complementares e expansivos?

Na natureza, os polos positivo e negativo são complementares. Um não existiria sem o outro.

Em vez de dizer que polos diferentes se atraem, prefiro dizer que estes se complementam. Trato assim porque, nos relacionamentos humanos, os iguais se atraem e se completam quantitativamente, em busca da realização de seus propósitos, mas nem sempre em benefício do conjunto, geralmente visam vantagens individuais; enquanto os verdadeiros complementos devem ser entendidos pela soma dos diferentes, complementação qualitativa, considerando que, neste caso, há uma troca de informações, conhecimentos, experiências, um auxilia na evolução do outro.

Entretanto, na natureza, em que não se manifesta afetividade conforme os valores humanos, polos iguais, a meu ver, não se repelem, apenas se expandem em busca de unidades complementares para formar elementos temporariamente estáveis, até que, em função das necessidades vitais do universo, se desagregam e reiniciam o processo de expansão e complementação. Assim funciona a dinâmica da natureza: tudo se transformando através de infinito processo de expansão, complementação, expansão…

Polos diferentes se complementam, polos iguais se expandem, isso ocorre simplesmente para manutenção da vida. É a incondicional solidariedade do universo no seu mais alto grau de pureza e perfeição.

No conjunto do universo, nada é adverso, tudo se complementa. Na natureza tudo se harmoniza. Só existe adversidade quando nossos desejos ou nossas necessidades pessoais são colocadas à prova, portanto deus e o diabo são um só, e estão separados apenas em nossos conceitos, que em geral são formados tendo como base os nossos desejos e afetividades. 

Por Fernando Soares Campos – Colaboração*

(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de “Fronteiras da Realidade – Contos para meditar e rir… ou chorar”, Chiado Editora – Portugal – 2018, à venda nas melhores livrarias brasileiras: Saraiva, Livraria Cultura e  Livraria Martins Fontes Paulista.

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