ASA se posiciona contra a privatização do rio São Francisco
Articulação defende que alternativa à venda das águas do Velho Chico é o fortalecimento do Programa Cisternas.

A possibilidade de o setor privado gerir o Projeto de Integração do Rio São Francisco (Pisf) tem gerado revolta e preocupação entre os povos do Semiárido. De acordo com reportagem do jornal cearense Diário do Nordeste, o governo federal deve publicar em setembro o edital para a concessão da gestão dos eixos Norte e Leste. A previsão é de que a licitação seja aberta no mês de novembro — às vésperas da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP), no Brasil.
O investimento previsto para a operação é de R$ 542 milhões com a possibilidade de aporte de R$ 1,6 bilhão para ampliar a capacidade das estações de bombeamento de água, segundo o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR). A transposição atende aos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, e desde o início da construção, em 2007, existe a promessa de que o empreendimento leve água a 12 milhões de pessoas.
Embora não seja surpresa para quem acompanha as discussões sobre a transposição do “Velho Chico”, a notícia publicada na última quinta-feira (24) a respeito de uma futura parceria público-privada (PPP) para administrar por 30 anos os canais levanta dúvidas acerca da política de democratização do acesso à água. O compromisso assumido pelo governo federal e defendido há 25 anos pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) é imprescindível para a convivência com a região.
É importante reafirmar que a ASA sempre foi contra a transposição porque provoca grandes impactos socioambientais e que no fundo é um projeto de privatização das águas do rio São Francisco. A ASA defende a garantia do direito do acesso à água a todas as populações que vivem na região, independente se estão na beira do São Francisco ou espalhadas no Nordeste Setentrional”, afirma o coordenador executivo da ASA, Cícero Félix
De acordo com o membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Roberto Malvezzi, a decisão do governo de conceder o rio São Francisco ao Capital concretiza o objetivo que sempre esteve na gênese do Pisf: criar um dos maiores mercados de água do planeta. “Com essa PPP o Estado se retira da obra e entrega para a iniciativa privada um mercado seguro. A captação é perfeitamente mensurável, essas águas são direcionadas pelos canais, chegam aos estados receptores e cada um vai comprar água dessa empresa”, afirma.
Em vídeo divulgado no YouTube, Gogó — como é mais conhecido — avalia ainda que, se a PPP prosperar, não levará muito tempo para que as companhias estaduais passem a comercializar as águas do São Francisco. Para completar o ciclo do “hidronegócio”, ele alerta que será praticamente inevitável o “subsídio cruzado”, ou seja, o custo alto da água para o agronegócio e para a indústria será pago pela população mais pobre.
Programa Cisternas mais forte é a solução
Manter o rio São Francisco vivo e descentralizar as obras de infraestrutura sempre foram as alternativas defendidas pelos movimentos sociais para ampliar a disponibilidade hídrica de maneira justa no Semiárido. Depois de muito diálogo, o investimento em pequenas e médias adutoras e, principalmente, na captação da água da chuva para beber e produzir foi incorporado no orçamento público nos governos Lula e Dilma, mas drasticamente reduzido pelos governos Temer e Bolsonaro.
“Os canais foram feitos para transportar 127 metros cúbicos (m³) de água por segundo e nos momentos mais baixos [do rio] uma média de 26 m³/s. Até hoje, esses canais só levaram a média de 26 m³/s de água. Então, a impressão que fica é de que foi feito um míssil para matar um pernilongo. Isso poderia ter sido substituído pelas pequenas e médias obras que a gente propunha e são muito mais adequadas”, explica Gogó.
Em sua denúncia, o ativista pondera que nos governos petistas foi iniciada a construção de algumas adutoras destinadas a abastecer comunidades distantes até 15 quilômetros do rio São Francisco. Os empreendimentos, no entanto, nunca foram concluídos. Segundo ele, é o que se pode ver nos municípios baianos de Casa Nova, Remanso e Pilão Arcado que têm pelo menos 17 obras hídricas inacabadas.
“Quando a gente procura o governo, eles dizem que é um custo barato de R$ 8 milhões. Então perguntamos por que não conclui? Aí tem agora a proposta de colocar nessa empresa mais de R$ 2 bilhões para ela se preparar com dinheiro público para fazer a gestão da água que ela vai ganhar dinheiro”, critica Gogó.
Cícero acrescenta que a ASA já provou que há outras formas de democratizar o acesso à água no país por meio do Programa Cisternas. A iniciativa proposta pela sociedade civil organizada foi oficializada como política pública em 2003 e de lá para cá já beneficiou mais de 1,2 milhão de famílias só no Semiárido. A estratégia é reconhecida internacionalmente com impactos socioeconômicos e ambientais positivos.
“É preciso reafirmar o sucesso desta política pública e que, portanto, o único caminho é garantir orçamento público do Estado Brasileiro para democratizar cada vez mais o acesso à água com o Programa Cisternas. Por isso, a ASA luta pela universalização da primeira água, garantia da água para a produção de alimentos de verdade e outros usos das populações do Semiárido”, destaca.
Para concluir, Gogó questiona: “Por que se pensa só nos canais da transposição, na gestão das águas e na privatização? Por que se abandonou o rio São Francisco e sua população dessa forma?”
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