Ilha do Ferro: espelho da arte ribeirinha potencializa criatividade de artesãos alagoanos

29 jun 2016 - 11:49


Espaço encravado em pleno sertão alagoano é sinônimo também de fertilidade cultural que encanta turistas.

Ilha do Ferro é espaço de criatividade e fertilidade cultural (Foto: Itawi Albuquerque / Agência Alagoas)

Ilha do Ferro é espaço de criatividade e fertilidade cultural (Foto: Itawi Albuquerque / Agência Alagoas)

Jaciobá, mais conhecido como Pão de Açúcar. O nome concedido inicialmente ao município ribeirinho de Alagoas, localizado a 238 quilômetros da capital Maceió, faz alusão a uma das visões mais encantadoras que se pode contemplar no sofrido, porém belo, sertão alagoano. A palavra de origem Tupi –  escolhida pelos índios Urumaris, antigos habitantes daquela região – significa “espelho da lua”, em referência ao reflexo do satélite nas águas do Rio São Francisco.

Com a colonização portuguesa, a mudança na linguagem dos povos consistia em uma das principais estratégias de domínio das sociedades europeias, transformando Espelho da Lua em Pão de Açúcar devido à presença de um morro na paisagem, cujo aspecto assemelha-se a uma forma utilizada no processo de produção do açúcar na época dos antigos engenhos.

Hoje, a sensibilidade com que os primeiros habitantes enxergavam seu espaço e a relação que estabeleciam com o Velho Chico parece não ter se perdido no sereno povoado Ilha do Ferro. Distante dos grandes centros, a Ilha do Ferro é espaço de criatividade e fertilidade cultural, inspirada nas paisagens e características locais que se concentram nas mãos e no imaginário dos artistas que por ali residem.

O acesso pela estrada de barro indica, inicialmente, a simplicidade do lugar. Em ruas estreitas e acolhedoras vão surgindo indícios de uma vida discreta, sinalizada pelas conversas à porta de casa, os vizinhos que se conhecem por apelidos, o bordado feito na calçada, as lavadeiras em seu ofício às margens do São Francisco e, claro, o artesanato das esculturas em madeira.

Como saber popular repassado de geração em geração, na Ilha do Ferro a matéria-prima morta descartada na natureza vira instrumento e inspiração, dando forma às peças de decoração e utensílios como cadeiras, objetos de arte, mesas, bancos e o que mais o impulso criativo de cada artesão permitir.

Pioneiro nessa produção, o mestre Fernando Rodrigues, que faleceu há oito anos, deixou um legado com nomes fortes de talento e criatividade. Aproximadamente 25 homens trabalham com o artesanato em madeira atualmente. Dentre eles, Valmir Lessa – casado com a filha de Fernando, também artesã, Rejânia Rodrigues – e o Mestre Aberaldo, conhecidos nacionalmente pelo olhar original concedido às produções.

Artesão há mais de 15 anos, Valmir Lessa conta que sua primeira peça é fruto de uma pequena “rixa” existente entre sogro e genro.

“Eu comecei quando ele me desafiou aqui. Eu trabalhava na roça e de noite pescava, aí ele estava aqui trabalhando e eu disse que sabia fazer uma cadeira também. Que era fácil. Ele disse que eu não sabia de nada. Duvidava. Eu disse: “Então me dê a madeira e as ferramentas”.  Nesse dia eu fiz uma cadeira linda para minha filha. A partir daí, fiquei trabalhando com ele e não parei mais”, conta Valmir.

Procurado por turistas de todas as partes do Brasil, Valmir afirma que se tornou conhecido aos poucos. Para chegar ao produto final que hoje decora espaços em diversos lugares do país, a madeira passa pelo olhar apurado do artesão em um processo que começa ainda na mata.  De acordo com Valmir, é preciso verificar se existem espinhos e se o galho e o tronco “dão forma”, antes de recolher a matéria-prima.

Apesar do olhar atento e do notável dom artístico, Valmir Lessa encara com naturalidade tamanho talento. “A maioria das coisas já vem pronta. Já são feitas pela natureza. Tem uma cadeira aqui que eu só coloquei o pé. O povo diz que eu sou bom, mas eu olho a madeira morta e digo: Isso aqui vai dá um pássaro. Ou, isso aqui dá uma cadeira. Enxergo o que já existe ali. O dom é só de conseguir ver o que já vem pronto”.

Bebendo na mesma fonte, os artesãos buscam a originalidade em pequenos diferenciais. Se a especialidade de Valmir são as cadeiras, Mestre Aberaldo tem como principal produção os banquinhos e os famosos bonecos de madeira. Pássaros também estão entre os preferidos do artesão.

Toda diversidade cultural e estética da Ilha do Ferro foi capturada pelos olhos do designer alagoano Rodrigo Ambrósio, que, através do Grupo Design Armorial, executou o projeto Afluentes, em maio deste ano. O projeto, que teve o apoio da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur), reinterpretou a produção artesanal local por meio da intervenção do design, produzindo peças que registram o espírito estético da região. O resultado será exposto em agosto na Galeria Legado Arte, durante a Design Weekend, em São Paulo.

A ação contou, ainda, com a participação dos designers Rodrigo Almeida, Dalton Costa e Maria Amélia Vieira, além do pesquisador Jairo da Costa e da jornalista da revista Casa Vogue Beta Germano.

“No alto da Boca do Vento, eu e Valmir trabalhamos em constante parceria, auxiliados também por quem chegava, como Vandinho e seu filho Neto. De desafio em desafio criamos e produzimos quatro peças, elos de arte e design que comunicam a memória do lugar, são elas: Guardião, banco em madeira Craibeira; Carranca, um vaso da mesma madeira; Calango; banco em madeira Pereiro e Moxotó, uma luminária”, explica Rodrigo Ambrósio.

“Boa noitinha”

O fazer artístico da ilha não se limita ao artesanato em madeira. É por lá, também, que nasce o singelo bordado boa-noite. Para regularizar a situação das artesãs, em 1999 foi criada a Cooperativa Artesãs da Ilha do Ferro. A prática é considerada ofício comum entre a maioria das mulheres da região, que de tão familiarizadas demonstram intimidade quando falam no assunto. Rejânia Rodrigues, 50 anos e artesã desde criança, chama carinhosamente o bordado de “boa-noitinha”. Nesse sentido, mais uma vez o espaço serve de inspiração. O bordado é inspirado em uma flor típica da região que carrega o mesmo nome.

Simpática e de fala mansa, apenas uma possibilidade preocupa Dona Rejânia: o futuro do Rio São Francisco. “É muito forte isso de retratar o nosso lugar. Fico pensando então como vai ser se o Velho Chico morrer. Diziam que o Rio São Francisco ia virar um poço, e agora acho que de fato vai virar mesmo. Quem sabe nossas futuras gerações, os meus tataranetos, não vão alcançar isso? Eu faço economia de água, faço economia de energia, tudo para ver se a situação não piora. Acho isso aqui lindo. Vai ser uma pena se acontecer. 

Apesar das dificuldades, a Ilha do Ferro é cenário de uma vida tranquila e regada a pequenas alegrias diárias. O sentimento de pertencimento e o desejo que se ouve entre os moradores da Ilha do Ferro é quase que uníssono: Aqui é meu lugar. Quero viver e morrer aqui.

“Através do trabalho da Cooperativa já passei por tantos lugares. Já fui até para fora do Brasil. Mas se me perguntarem onde eu quero morar, vou dizer: Ilha do Ferro. Quem não quer uma vida de princesa como essa? Eu estou aqui, olhando a beleza do Rio São Francisco, fazendo meu bordado, meu marido fazendo nosso trabalho, nós pescando, com saúde, tenho meu pão de cada dia. O que eu quero mais na vida?”, conta, aos risos, Dona Rejânia.

Nada, Dona Rejânia. Mais nada.

Por Andressa Alves / Agência Alagoas

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