Alagoas é destaque em mais uma denúncia do Fantástico

01 dez 2013 - 22:34


Palmeira dos Índios e Senador Rui Plameira foram as cidades citadas pela reportagem-denúncia

Pipa

Foto: Reprodução Fantástico

Durante dois meses, o Fantástico percorreu a região Nordeste para investigar como funcionam os programas que combatem a seca com caminhões-pipa.

Um crime contra a saúde de brasileiros carentes! Esse é o tema da reportagem especial do Fantástico deste domingo (1º). Durante dois meses, nós percorremos a região Nordeste, para investigar como funcionam os programas que combatem a seca com caminhões-pipa.

Encontramos tanques imundos, água contaminada e entregas que não chegam nunca. A reportagem é de Wilson Araújo, Alan Graça Ferreira e Maurício Ferraz.

No meio do agreste nordestino, perto de um rio seco, e de famílias que sofrem com a falta d’água, um tanque de combustíveis está à venda. O preço: R$20 mil. “Se for dinheiro, dá pra baixar. Botar em R$17 mil, R$18”, diz o vendedor.

Até um ano atrás, o tanque era usado para estocar álcool e gasolina. A lei manda que um tanque desses, quando esgota sua vida útil, seja incinerado, destruído. Não pode transportar mais nada. Mas dois homens dizem que dá pra carregar água tranquilamente.

“Tanque para combustível jamais pode ser usado para armazenar ou transportar água. Sempre vai causar problema de saúde. Inacreditável a cor da água”, afirma Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina da USP.

Durante dois meses, o Fantástico investigou denúncias graves, envolvendo programas de distribuição de água em caminhões-pipa.

É dinheiro público que deveria atender com dignidade as vítimas da seca. Hamilton Souza, caminhoneiro, do Piauí, conhece bem a água que leva pra população.

“O senhor não tem coragem de beber?”, pergunta o Fantástico.

“Ah, eu não bebo, não. pra falar a verdade, eu compro a água. Eu compro mineral e bebo”, afirma Hamilton Souza, caminhoneiro.

Nossa equipe rodou mais de seis mil quilômetros em Alagoas, Pernambuco, Piauí e Bahia. E constatamos que a má qualidade da água não é o único problema. Os prazos de entrega raramente são respeitados.

“Dia 15, você não entregou. Dia 3, não entregou. Dia 10, você não entregou quase nada de água”, disse o repórter.

Uma mulher concorda que, se viesse água com frequência, quatro vezes por semana, não faltaria. “Se falta água, a gente tem que partir para os açudes. Beber essa água suja dos barreiros”, diz um homem.

O principal responsável pela distribuição de água no semi-árido brasileiro é o Exército, que coordena a “Operação carro-pipa”.

São 835 cidades, em nove estados, totalizando quase quatro milhões de pessoas. Este ano, o governo federal já gastou mais de meio bilhão de reais nesse programa, que conta com cerca de seis mil “pipeiros”, como são chamados os caminhoneiros que distribuem a água.

Cada um recebe do Exército um pagamento de até R$15 mil por mês.

Sem saber que era gravado, o pipeiro, contratado pelo Exército assume que o tanque dele já armazenou combustível e era subterrâneo: ficava debaixo das bombas de gasolina.

Números da Polícia Rodoviária Federal revelam: nos últimos dois anos, já foram identificados 70 caminhões-pipa suspeitos de transportar água em tanques que já armazenaram combustível.

Esses veículos prestavam serviço para o Exército e também para estados e prefeituras.

“O uso dele era de veículo de transporte de combustível. As características, a ferrugem, o desgaste do material, o tipo de corte interno”, afirma Sylvio Jardim Neto, da polícia Federal.

“Nós fizemos um relatório de todo o levantamento e encaminhamos para o Ministério Público”, diz Vera Lúcia Pretto Cella, superintendente da Polícia Rodoviária Federal de Alagoas.

Os tanques subterrâneos de postos de gasolina são geralmente cilíndricos e com divisões internas.

O que mostramos no início da reportagem e está á venda tem capacidade para 20 mil litros.

Encontramos o tanque, ainda com terra, num posto desativado, em Palmeira dos Índios, Alagoas.

Fantástico – Foi desenterrado há quanto tempo?

Dono do tanque – há uns oito meses.

Fantástico – ficou quanto tempo lá embaixo?

Dono do tanque – lá embaixo, acho que foi, mais ou menos, um ano e meio, dois anos.

O homem que negocia o tanque por R$20 mil diz ao nosso produtor que já vendeu outros quatro.

Fantástico – Os caras que compraram os outros foram pra carregar água?

Dono do tanque – Foi pra carregar água. Pra operação pipa, no caso.

Ele fala que, para entrar no programa do Exército, o tanque tem que ser modificado numa oficina.

Nesta, um mecânico nos atende diz como transformá-lo num caminhão-pipa.

“Tem que diminuir ele, cortar ele. Aí, rebaixa ele e ele fica bem rebaixadinho”, conta o mecânico.

Fantástico – Você já fez muito isso?

Mecânico – Já, já.

Com a ajuda da computação gráfica, é possível entender melhor como o tanque ficaria.

Fantástico – Quanto vai cobrar pra fazer isso pra gente?

Mecânico – Quatro mil ‘conto’.

Fantástico – Quatro mil?

Mecânico – É.

No preço, está incluído um “serviçinho”. Diz o mecânico que é pra tirar as sobras do combustível.

Fantástico – Lava com sabão.

Mecânico – Só sabão?

Fantástico – Sabão com água, né?

O dono do tanque confirma.

“Não sai com sabão, não sai com detergente, não sai com soda e não sai com ácido. Faz parte permanente da estrutura já do tanque”, explica Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina, USP.

Ao saber que se tratava de uma reportagem, o dono do tanque não apareceu mais.

“Você não pode lavar um caminhão e achar que ele está bem. A água vai estar contaminada e não é adequada para o consumo humano”, explica Pedro Mancuso, engenheiro e professor da Faculdade Saúde Pública/USP.

Quem bebe dessa água pode ter diarreia e até câncer.

“Pode provocar tumores em qualquer órgão do corpo: coração, pulmão, fígado principalmente, baço”, afirma o toxicologista.

Entre maio e agosto, houve uma epidemia de diarreia em Alagoas. Foi a única registrada no Brasil nos últimos 10 anos:131 mortes, e um total de mais de 52 mil casos.

Dona Maria foi uma das vítimas. “Aqueles enjoo, sem querer comer nada e enfraquecendo e a gente levando no médico, mas infelizmente não teve como vencer”, conta José Silva Balbino, filho de dona Maria.

Durante a epidemia, não foram feitos testes para detectar combustível. Mas os laudos apontaram que a água estava contaminada por fezes e bactérias.

“A água que está sendo transportada pelos caminhões-pipa e a qualidade desses caminhões-pipa, com certeza, foram preponderantes para essa epidemia de diarreira”, afirma Micheli Tenório, promotora de Justiça.

Um caminhonheiro de Alagoas diz trabalhar no Exército há quatro anos e assume que o tanque dele, que hoje leva água, era de combustível. E diz que o pessoal do Exército sabe disso.

“Eles sabem, porque eles vêm a proporção do tanque. Quem é que não conhece, né?”, diz.

De acordo com o Ministério Público, existem denúncias que indicam que oficiais e ex-oficiais do

Exército cobram propina de caminhoneiros. Segundo as acusações, dando dinheiro, o motorista consegue ser contratado e passa por uma fiscalização menos rigorosa: o veículo é liberado para o serviço, mesmo sem condições.

“Se chegar ao fim e ao cabo dessas investigações e que tudo indica, nós chegaremos nessa conclusão de que houve esse episódio lamentável de propina, de corrupção, isso é realmente repugnante”, afirma Michelini Tenório, promotora de Justiça.

Além disso, os pneus estão carecas e a placa, adulterada. Mesmo assim, o veículo passou na vistoria do Exército.

“Jamais poderia ter sido aprovado na vistoria. Não poderia jamais estar transitando”, explica Décio Lucena, da Polícia Rodoviária Federal da Bahia.

O motorista ainda não cumpre a planilha que diz onde e quando a água deve ser entregue.

Fantástico – O senhor entregou 15 viagens. O senhor teria que entregar 27.

Moisés Dias, caminhoneiro – Exatamente. Ainda falta mais pra eu ir. Que o carro deu problema.

Fantástico – Estava quebrado o caminhão?

Moisés Dias, caminhoneiro – É. Exatamente. Deu problema.

Durante uma fiscalização recente, várias outras irregularidades. Esse caminhão acaba de ser apreendido pela Polícia Rodoviária federal. O motorista não tem habilitação. O caminhão também não tem nenhum tipo de documentação. O motorista também não tem o controle da distribuição dessa água, pra quem entregou a água.

“Mesmo que atrase a entrega da água, é necessário que a água seja potável e seja uma água boa para o consumo”, afirma Vera Lúcia Pretto Cella, superintendente PRF/AL.

O dono do caminhão apreendido reconhece que não segue a planilha do Exército.

“A mulher disse que não tava necessitando ainda, que tem na cisterna”, diz dono do caminhão.

Será que é isso mesmo?

Ao contrário do que disse o dono do caminhão, não encontramos nenhuma cisterna cheia no sítio Loiola, perto da cidade de Uauá, a mais de 450 quilômetros de Salvador.

Fantástico – Sobrando água não está?

Loiola Cardoso – Está nada. Pode até sobrar de um dia para o outro. A coisa está dura.

Voltamos a Alagoas, para apurar uma denúncia de fraude. A empresa Wash Service ganhou duas concorrências públicas do Exército para distribuir água. Entre 2012 e 2013, já recebeu mais de R$ 4,2 milhões.

No lugar onde seria a sede da empresa, em Maceió, não há nenhuma placa de identificação e não encontramos ninguém.

A mais de 250 quilômetros, em Senador Rui Palmeira, fica o endereço de uma sócia.

Janaína da Conceição Silva, que seria sócia da empresa que ganhou a licitação, não é encontrada em casa pelo Fantástico. A mãe dela nos recebe.

Fantástico – A senhora sabe se ela é dona de alguma empresa?

Mãe – Não. Quem tem empresa é o marido dela.

Fantástico – Ah, o marido?

Mãe – Sim. O Sargento Moreira.

William dos Santos Moreira foi sargento do Exército. Ele pediu dispensa da corporação em setembro deste ano. Portanto, ainda era militar na época que a Wash Service ganhou a concorrência pública. A lei das licitações determina que servidor não pode participar de concorrências na instituição em que trabalha. E o regimento do Exército ainda proíbe que o militar tenha outra atividade profissional.

No contrato social, o nome do sargento Moreira não aparece. Por telefone, Janaína – a mulher dele – disse: “A empresa é no meu nome mesmo”.

Fantástico – E quem tomava conta era o seu marido? O sargento Moreira?

Ela não responde.

Fomos a outras casas da região.

Fantástico – Qual a última vez que chegou água para o senhor?

Agricultor – Há mais ou menos uns 60 dias.

Já na casa da sogra do Sargento Moreira: “Agora, não falta não. Porque ele manda colocar”, diz ela.

“Quem?”, pergunta o Fantástico.

“O Sargento Moreira”, responde a sogra.

Procuramos o ex-militar durante três dias. Deixamos vários recados, mas ele não nos atendeu. Um motorista contratado pela Wash Service tem que abastecer a comunidade Pai Mané – na cidade de Dois Riachos, Alagoas, quatro vezes por semana. Mas os moradores dizem que isso não acontece.

Fantástico – Ficam quantos dias sem água?

Senhora – Às vezes, passam oito dias, 15 dias, um mês. Os quatro caminhões na semana, estava ótimo. Não carecia mais.

“Isso é crime. Você está lidando com água, que é vida para uma população que já é tão ressentida, que é a população do sertão nordestino”, diz Michelini Tenório, promotora de Justiça.

“Nós vamos abrir um procedimento administrativo para apurar essa possível irregularidade. E, caso constatada, serão adotadas as penalidades conforme a lei”, diz o coronel Valdênio Barros da Rocha, coordenador da operação carro-pipa do Exército.

Além dos veículos do Exército, as populações de Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Alagoas também são atendidas por caminhões-pipa mantidos pelos governos estaduais.

Juntos, esses programas de distribuição vão consumir mais de R$121 milhões até o fim do ano.

O Fantástico também investigou como esse dinheiro é aplicado.

Por onde passamos, os problemas se repetiram.

Fantástico – Essa água é limpa?

Caminhoneiro – É limpa.

Fantástico – Mas está cheio de terra ali no fundo. Está sujo.

Caminhoneiro – Não. Ela é limpa. Agora é que, às vezes, pega alguma poeira.

O desleixo maior foi em Ouricuri, Pernambuco. O lugar é como se fosse um cemitério de animais. E há um ponto clandestino de abastecimento de água.

Nossa equipe filmou quando um caminhão – a serviço do governo estadual – pegava água no açude. O motorista afirmou: “Pega desse açude aí?”.

“É. pra beber”.

Ao ser avisado que se trata de uma reportagem, o caminhoneiro disse que o veículo é do irmão dele: um vereador de Ouricuri.

Fantástico – Seu irmão entrega água para os eleitores?

– Para os eleitor.

Fantástico – O pessoal que vota nele, ele dá uma força?

– É, dá uma força.

Fantástico – A água está barrenta, não está?

– Mais ou menos. Não é muito barrenta, não.

O vereador Edilson Silva Oliveira aparece logo depois.

– Aqui não tem preferência, nem troca de voto.

– O senhor bebe essa água ai?

– Não. Isso é pras minhas plantas. Isso aí só serve para aguar plantas e pra animais beberem. Vai lá para o meu sítio.

Ele recebe, em média, R$5 mil por mês para levar água que deveria ser de boa qualidade aos moradores da região.

“O carro que transporta água para o gado é destinado só para o gado. Está infringindo a lei. Não pode”, diz um homem.

A Vigilância Sanitária constatou que a água está contaminada por fezes humanas e de animais. Tudo foi jogado numa praça. Depois disso, o vereador foi retirado do programa de distribuição de água.

Em algumas regiões do Nordeste, esta é a pior seca dos últimos 50 anos.

Fantástico – A senhora tem água para mais quantos dias?

Ana Maria da Silva, agricultora – Na cisterna? Pra uns oito dias. Sempre está faltando água.

Se um caminhão-pipa não chegar, uma represa pode ser a única alternativa.

Um casal não recebeu nenhuma gota dos programas de distribuição de água. Pra não passar sede, recorreram a um açude.

Fantástico – É água limpa?.

– É amarela, mas dá pra beber.

“Água é tudo, né. Faltou água, falta tudo pra gente”, afirma Vanildo da Silva, agricultor

G1

Comentários