A PROMESSA DE CASTEADO

23 julho 2015


Era uma vez, assim que o dia nasceu. Mais uma vez era. A casa continuava no mesmo canto, encostada nas outras. Se tivesse sozinha já teria caído. O salitre, os tijolos frágeis, de barro cozido. Ao ver aquela cena, vieram lembranças que fez tudo voltar ao passado de João Pedro. Pra construí-la foram dias de trabalho duro, o homem e a mulher somente. Da encosta do riacho arrancaram o barro. Com as próprias mãos moldaram os tijolos. Fizeram uma caieira que varou a noite queimando. E o bolo de fogo crepitou na catingueira verde azeitada que produziu um cheiro doce. A caninana buscou outro lugar pra se entocar. Os olhos gigantes da coruja assoviavam, causando arrepios de dar medo. O ponto de fogo lá no pé da serra, de cá da cidade parecia só o lume dum palito de fósforo aceso.

Pitava João, pitava Maria cigarros de palha, de rara beleza, singela ação pra quem via; raro sabor, um primor pra quem vivia. A cozinha baixinha, pretinha punha os mais taludos de cócoras e os pequenos aproveitavam pra desabarem nos seus colos. O menino viu e guardou, sem saber que guardava guardou. Os dias andaram de roda gigante, e fez miséria. A rua cresceu, e se multiplicou, fez como rezava no livro de Gênesis. Mas despois que cresceu, seus filhos foram embora, foram cuidar de suas vidas cortando o cordão umbilical deles com a rua. Rua que lhes amamentara, lhes embalara lhes pusera pra dormir. E de tristeza a rua encolheu, definhou, tanto que morreu. No seu lugar nasceu outra. Que nem em sonho imaginava que um dia fora a outra. O tempo de bandidos saqueadores estava instalado, não mais agora, mas naquele tempo da Rua Nova. Os homens se reuniram em assembleia daí virou Rua da Assembleia. A dificuldade do governo de cobrir com um contingente policial todos os municípios facilitava a ação dos malfeitores. Dona Adelia e Seu Canuto eram os moradores mais ilustres, os mais abastados de recursos. Os facínoras os tiveram em mira. Os-leva-e-trás, os olhos do coronel deram com a língua nos dentes. Vulnerável se tornavam vítimas. Quem só tinha a vida, uma reserva de grãos no fundo da dispensa, e alguns tostões enrolado num lenço debaixo da camarinha. Outra alternativa não havia, a não ser fugir. Um vaso branco era peça de estimação, também ia pra o mato, nos dias de tribulação. Fugir talvez fosse a única saída pra quem não queria ir pro enfrentamento. Os declives do relevo, as encostas dos cursos d’água, as grotas, tudo que pudesse esconder um cristão servia de refúgio.

“Então, aproximando-se dele um escriba, disse-lhe: “Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores.” Jesus lhe respondeu: “As raposas tem suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o filho do homem não tem onde repousar a cabeça.” Outro de seus discípulos lhe disse: “Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mateus 8-20”

A filha de João e Maria tinha saudade do pai, queria tanto ver o pai. Lembrava dos seus olhos calados. Lembrava do jeito como sentava. Se afastava de costas até a cadeira segurando com seus braços magros, os braços rijos da cadeira. E cruzava a perna direita sobre a esquerda, nunca ao contrário. As mãos espalmadas uma sobre a outra apoiadas sobre os joelhos. Assim acabaria escrevendo na memória da filha, como queria para sempre ser lembrado. Meu Deus como era tanta a vontade de revê-lo, não existia outra coisa mais importante que isso. Era tudo o que dali por diante pediria a Deus, até seus últimos dias. Perguntaria como estava de saúde, se no céu também cuidavam de roça. O cabo da enxada lustroso de uso, a folha do instrumento de tão gasto arredondara nos cantos. O cabide de pendurar pano de pratos era de madeira, tinha a cabeça dum peru branco com sua pinta vermelha descendo por cima do bico. O filtro d’água tinha roupinha com enxadrezado de crochê na borda e um desenho de rosas amarelas que lembravam bagos de jaca. A bandeja dos copos coberta com redinha de filó ornada com fuxicos. A outra filha não se lembrava mais de nada disso. Tão esquecida coitada. Não lembrava mais do dia do sepultamento do pai. O sobrinho ajudou. Se lembre tia que o padre Moisés disse assim: “-João… Morreu num grande dia. No dia da anunciação. Dia em que o arcanjo Gabriel anunciou a Virgem Maria que ela ia ser a mãe do Salvador.” Era o dia 25 de março daquele ano.

“Quando Isabel estava no sexto mês de gravidez, Deus enviou o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia chamada Nazaré. O anjo levava uma mensagem para uma virgem que tinha casamento contratado com um homem chamado José, descendente do rei Davi. Ela se chamava Maria. O anjo veio a ela e disse: “-Que a paz esteja com você, Maria! Não tenha medo! Encontrastes graças diante do Senhor. Ficarás gravida, darás a luz um filho e porás nele o nome de Jesus. Ele será um grande homem e será chamado de Filho de Deus Altíssimo. Deus o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. Ele será para sempre rei dos descendentes de Jacó, e o reino dele nunca terá fim. “-Como isso se dará? Se não conheço homem.” Perguntou-lhe Maria. Ele respondeu: “-O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Deus Altíssimo o envolverá com sua sombra. Por isso o menino será chamado de santo e filho de Deus. Sua parenta Isabel está grávida, mesmo sendo idosa. Diziam que ela não podia mais ter filhos, no entanto ela já está no sexto mês de gravidez. Porque para Deus nada é impossível.” Maria respondeu: ‘-Eis aqui a serva do Senhor, que aconteça comigo o que o senhor acabou de me dizer.” E o anjo foi embora. São Lucas 1,26-38”

O primo Casteado teve uma dor de dente horrível. Foram cinco dias com cinco noites sem dormir. Na primeira noite, destroçou um travesseiro mordendo e grunhindo feito um cão raivoso. Amanheceu na porta de Seu Pedrinho, protético, que temeu extrair o maldito, pois estava bastante inflamado. Receitou-lhe um anti-inflamatório, que praticamente surtiu efeito contrário. O peste era teimoso e fazia esforço durante o dia, pra desparecer a dor maligna trabalhava, na broca duma roça, no carrego de saco na cabeça. Na segunda noite sem pregar o olho, teve alucinações. Andava com um pano amarrado por baixo do queixo e encima da cabeça. Na terceira noite andava doido o homem. Tomava um litro de cachaça de uma vez só e a única coisa que conseguiu foram ferimentos no cocuruto que bateu muitas vezes contra o tronco de uma árvore. No quarto dia foi a um rezador, os galhos de arruda do homem murcharam que foi uma beleza. Disse-lhe que estava cheio de olhado, espíritos ruins lhes acompanhava. Disse ele que botou tudinho pra correr. Durante a reza ele passava a mão espaduada do ombro até os rins. Como se estivesse tangendo algo que estava sobre os ombros do caboclo. Somente os espíritos do outro mundo viam, o que ninguém mais via. Pediu que lhe estendesse a mão espalmada, olhou-a atentamente, se benzeu. Pediu que se benzesse também. E continuou suas profecias dizendo que uma mulher por nome Maria, que na juventude havia sido sua namorada, com quem acabara o namoro. Por vingança fez um trabalho para derrubá-lo. Não conseguindo, no entanto, pois Casteado, tinha o corpo fechado. Por conta desse dente, Casteado ficou vagando várias noites, pelos arredores da vila. Passaram a dizer até que estava correndo bicho, e que teria o poder de tornar-se vulto, de se transformar na besta fera, ou num lobisomem, nas noites de lua cheia. No quinto dia, mesmo inchado, o charlatão resolveu extrair o dente. Em vão aplicou sedativo. No cru mesmo o infame teve que ser tirado. Horripilante grito ouviu-se do pobre diabo. No exato momento que o sol se ia, e a lua prateava o início da noite.

Na cozinha de cócoras com os pés descalços sujos, a calça enrolada até a batata das pernas. Uma xícara de café fumegante na mão que cobria parte do rosto. Fitava o primo Benício Felix que tinha por aqueles dias, chegado da Bahia de São Salvador. Fazia cinco anos que não aparecia, tinha ingressado na marinha, na capitania dos Portos da majestosa enseada dos Nautas de fronte a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. E agora de férias, resolveu estar de volta, rever os parentes. Casteado não parava de fazer perguntas. Fascinado queria saber como era a história que soubera que ele viajava num bicho grande todo feito de ferro, que andava no fundo do mar chamado de submarino. Naquela cabecinha de pouca massa cinzenta aproveitável tal ideia era inconcebível. Não entendia como era que um troço pesado todo de aço não afundava. Como era que conseguia passar vários dias debaixo d’água? E pra respirar? Felix se divertia a custa do matuto, dizendo coisas ainda mais absurdas, que num hotel onde esteve em Mar Del Plata tudo era automático, apertava-se um botão e uma esteira rolante levava as malas até o quarto do hotel, na hora de servir-se a mesa. Do mesmo jeito, era só apertar um botão e as panelas sobre a mesa deslizando em trilhos despejavam as comidas no prato. E ria por dentro diante da cara de estupefação do pobre matuto.

Casteado também tinha uma história pra contar. Disse ele que na hora da agonia, na quinta noite da dor de dente um milagre aconteceu: “-Meu padrinho Cíço Romão Batista me apareceu! Perante a luz de Deus como era ele, Benício! Vestidinho na sua batina toda pretinha, pretinha todo ‘arrudiado’ de nuvens e uns anjinhos tudo voando. Tirou o chapéu da cabecinha, os cabelinho bem alvinho! E disse bem assim: “-Casteado quando você era menino pequeno, tinha só oito anos. Você teve uma doença, que ia lhe matar. Mas sua mãe chamou por mim, e disse que se você ficasse curado lhe levaria até Juazeiro do Cariri. Mas levaria você nuzinho, despido. E só era pra vestir uma roupa em você, quando chegasse nos degraus da igreja de Nossa Senhora das Dores.” No outro dia Benício, eu tomei uma decisão tirei minha roupa todinha, e fiz finca pé pra Juazeiro. Nu pelado do jeito que eu vim ao mundo. Quando cheguei no Pedrão, um soldado de ‘políça’ chegou junto. Todo enjoado me deu voz de prisão. Eu disse que estava indo pro Juazeiro pagar uma promessa a meu padrinho Ciço. Seu ‘poliça’ rodou-me a mão no pé do ouvido que o sangue do dente extraído espirrou fora. Passei uma semana preso, na delegacia de Olho D’água das Flores.”

Fabio Campos 09 de Julho de 2015

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